A bilbioteca é a história viva do Livro e seus leitores

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Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura - RJ

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

AUTOFICÇÃO E HISTÓRIA EM SINAIS DE FOGO


Os outros passam, tocam-se, separam-se,
Exatamente como dantes. Mas
Aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não resta,
senão noutros lugares que não conheço.
(SENA, “Noutros lugares”, 1967)



Dois aspectos da narrativa de Sinais de Fogo me interessam neste momento: seu traço autoficcional e a possibilidade de leitura do romance como ficção histórica. O primeiro será observado a partir de um recorte temático que geralmente tem sido incluído nos estudos da composição do romance que buscam associá-lo a um tipo de produção autobiográfica. Minha preocupação aqui será demonstrar que Jorge é uma ficcionalização do poeta em formação Jorge de Sena, não apenas pela coincidência dos nomes, mas principalmente pelo modo como a poesia surge, nasce e se desenvolve no personagem. A ação narrativa e as reflexões do personagem sobre si mesmo e sobre a composição poética confirmam, em diversos momentos, a perspectiva poética de Jorge de Sena. O segundo aspecto diz respeito à grande importância de um episódio histórico, a Revolução espanhola de 1936, que contribui para o processo de transformação individual de Jorge assim como para as transformações coletivas e políticas de Portugal. A centralidade do episódio na narrativa retira-o de uma suposta condição de mero pano de fundo, dotando-o de uma força integradora e gerenciadora da vida das personagens que compões o círculo de relações do protagonista. Segundo Mécia de Sena, Sinais de fogo:

Espelhava o ponto de viragem no panorama político e social europeu: a Guerra Civil de Espanha. Este acontecimento é fulcral no romance, e, tornando-o instrumental no despertar do protagonista para a realidade política e social, para o amor e até para o acto da criação poética, a acção não podia abranger mais do que esse preciso tempo de eclosão.[1]

É a Revolução ou os sinais dela em Figueira que encaminham Jorge para o amadurecimento emocional e existencial; é ela que o faz compor uma ponte que o leva de si para o outro e para a coletividade; é ela que o torna consciente sobre as consequências de suas escolhas; por fim, é a revolução no mundo exterior que faz nascer, no tumulto das indagações interiores, como de um salto, a sua voz poética.
Entrelaçam-se, pois, na narrativa romanesca,  a ficcionalização da formação do poeta Jorge de Sena e a ficcionalização do episódio histórico, proporcionando ao leitor um encontro singular, para o momento de produção da narrativa (fins de 1964), da voz poética que fala de um eu profundo em descoberta e da voz prosaica que narra a Guerra Civil da Espanha sob a perspectiva dos portugueses da Figueira que não apenas acolhem revolucionários como embarcam para a luta na Espanha. Mécia de Sena alerta para o rigor com que Jorge de Sena trabalhava o tema histórico, sempre precedido de minuciosa investigação dos fatos.

Para este romance, os dados foram, pois, buscados com o máximo rigor e, para informações que não conseguia, várias vezes lhe valeu Luís Amaro com a sua meticulosidade, eficiência e paciente poder de consulta. [2]

O rigor histórico no processo de composição da narrativa, no entanto, não compromete a sua realização literária. Hábil e intensamente poético na construção da prosa, Jorge de Sena traduz, pela perspectiva presencial de Jorge, os momentos históricos, como o estalar da Guerra Civil, que terminaria como os primeiros sinais da ação impiedosa do regime ditatorial instalado em Portugal. Retratada nas atitudes das personagens Jorge e Mercedes diante do corpo do amigo e do irmão, o Zé Ramos, encontrado na praia, aproximadamente um mês antes da “Revolta dos Marinheiros”[3].  José Ramos é o articulador principal da participação do grupo que possivelmente participa da expedição do Afonso Albuquerque à Espanha após a eclosão da Guerra e que foi interceptado e os tripulantes punidos pelo governo. Por isso Mercedes, ao reconhecer seu cadáver na praia, considera a possibilidade de o mesmo ter se matado para não delatar aos outros “ – Não foi desastre, tenho a certeza que não foi. Ele matou-se, ou deixou-se morrer. Por nossa causa.”[4] As revelações íntimas de Mercedes a respeito do irmão morto contrastam com a visão realista de Jorge, que se espanta com a frieza da conversa de ambos diante do cadáver de José Ramos, mas ao mesmo tempo revela o ideal nazista e a força política do irmão quando diz: - Não fazes ideia do empenho que pôs em organizar esta viagem, contra mesmo a vontade do partido. Ele queria uma coisa retumbante que comprometesse toda a gente de uma vez para sempre. Mas, se o Almeida não ia e tu ficavas, ele não suprimia um, nem evitava o outro.” [5] Em seguida, casal se despede sem anunciar o reconhecimento do corpo trazido àquela praia, naquele exato momento em que o casal por ali transitava.

- E agora ele não está vivo. Não posso tornar a vê-lo. Aquilo já não é ele
Fomos andando, e eu disse: - Estás enganada. Aquilo é ele.
[...] – Sim, é ele. Mas ele não se vingou de nós. Não foi ele quem trouxe o cadáver para ali. Não foi ele quem nos levou à praia para que o encontrássemos. Ele só se vingou dele mesmo. E tudo o mais aconteceu por acaso – e lembrei-me de o ver morto em meu sonho.
- O acaso, dizes tu... O acaso é a coisa mais horrível que há.
- [...] – E agora? O que vamos fazer?
- Nada. Ele morreu. Apareceu na praia. Nós não o vimos.
- Não o vimos?
- Não. Tu vais para a pensão, entras no teu quarto, deitas-te a dormir, dormes, e pronto. Não faças o jogo do acaso. Ele que o faça sozinho. [6]
A morte de Ramos, desfecho trágico de suas articulações políticas, trará grande transformação interior à Jorge assim como a todo o movimento comunista para derrubar o governo ditatorial franquista da Espanha (instaurado em julho de 1936) quanto o salazarista de Portugal (1933). A censura assim como a utilização dos jornais como instrumentos de disseminação do medo e contenção de ânimos para qualquer movimento contrário ao governo é evidenciada na narrativa pela descrição das notícias referentes à fuga de “comunistas” espanhóis. Cito:

O jornal era de Lisboa e o da véspera. Cheio de grandes parangonas sobre vitórias ‘nacionalistas” na Espanha, e vários retratos de heróis e de supostas vítimas ilustres do terror “vermelho”, tinha uma notícia do Porto, muito pequena, dizendo que, das prisões da Polícia, tinham fugido, em condições que faziam crer numa grande conspiração comunista, alguns presos de serem agentes, em Portugal, do Komintern.[7]

Os dois foragidos acusados de pertencerem à Komintern pelo governo, tratava-se dos dois espanhóis envolvidos no evento presenciado por Jorge ao chegar em Figueira da Foz e que em seguida serão abrigados por seu tio. A dúvida sobre a veracidade da notícia ou sobre a intenção do governo ao fabricá-la é discutida pelos personagens e a conclusão a que chegam é surpreendente, pois a notícia só foi publicada porque a censura deixou, ou porque mandaram publicar e o efeito da notícia tanto pode ser caçá-los, para fazê-los confessar e armar um escândalo político, ou deixa-los chegar lá (Espanha) e provam a interferência que procuram demonstrar. De qualquer forma, concluem, quem montou a aventura toda consegue o efeito desejado. E “-Quem a montou foi o Ramos, disso não tenho dúvida. Mas quem o montou a ele é que eu gostava de saber. Mas isso, ainda quando alguém o diga, é o que nunca se sabe ao certo. A política é isso mesmo.” [8] Mais uma vez temos o nome do José Ramos associado a uma organização maior que interfere tanto na vida cotidiana dos personagens próximos a Jorge e a ele mesmo quanto na participação política e social destes.
Jorge sintetiza esse atravessamento das sensações e da atmosfera social diante da opressão do governo. O episódio histórico narrado através da notícia de jornal lida pela mãe à mesa do café da manhã funciona como mecanismo de deflagração do sentimento de solidão e da sensação de impotência e de perda do domínio da vida, manipulada pelo governo.  Neste sentido, a ficcionalização da matéria histórica é essencial para que a narrativa descortine e revele o amadurecimento político e social do protagonista que, ao chegar em Figueira da Foz no momento da eclosão da Guerra civil da Espanha, observa as pessoas e a revolução como outros que não possuem qualquer relação com o que ele é. São seres diversos e até incompatíveis com a sua visão de mundo, incompreensíveis.


Eu não entendia nada do que tinha acontecido [...]. As pessoas que veraneavam tão longe não podiam ser, por certo, revolucionários. Pessoas dessas, era, sem dúvida, como nós: e, se não tinham quarto escuro, nem precisavam dele, podiam muito bem esperar sossegadamente, ao sol da Figueira e tomando banho de mar, ou sentados nos cafés, ou à volta das mesas de jogo do cassino, que a revolução acabasse. [1]

Na comparação dos dois momentos da narrativa, aponto para a transformação do protagonista e para a ampliação e construção de sua visão de mundo, tendo por fundamento o seu tempo e espaço histórico individual e histórico coletivo. É o modo pelo qual o protagonista percebe e reflete sobre esses tempos e espaços, que provocam nele uma emancipação de si através da poesia. De modo que a poesia será, não uma característica do ser, mas o próprio ser, por isso revela-se em aparições. É parte e essência da sua existência.
A ficcionalização do autor na obra pode ser identificada a princípio pela homonímia autor-narrador-personagem. No entanto, não me parece ser esse o critério mais apropriado para confirmar o caráter autoficcional de um romance, principalmente quando o personagem Jorge não se apresenta em nenhum momento como Jorge de Sena. A relação entre o autor e o personagem que o refigura deve ser tecida de outros elementos que torne possível ao leitor (modelo) reconhecer aproximações, verossimilhanças biográficas entre ambos. Estou a dizer que pode haver sombras, incertezas, distanciamentos e mesmo desconstruções do eu e ainda assim reconhecermos a refiguração do autor por ele mesmo, na narrativa. Como afirma Doubrovski, criador do termo autoficção, “reinventamos nossa vida quando a rememoramos” [2]. Em Sinais de fogo é possível reconhecer dados biográficos de Jorge de Sena implantados na configuração do narrador personagem, mas para além dos dados que em geral são comprováveis pela trajetória cronotópica da vida do indivíduo, do professor, do crítico literário e do escritor, há o caráter estético da sua poesia e a própria visão poética que o narrador personagem vai aos poucos revelando e tomando consciência do potencial criativo que possui (ou pelo qual é possuído), formando assim, desde o embrião, o poeta que tornou-se Jorge de Sena.
O primeiro momento em que o Jorge é tomado de assalto pela palavra ou pela expressão poética ocorre quando ele, já estando em Figueira da Foz, é interpelado por Macedo se já havia pensado em como vivem os pescadores, a gente do campo e os operários. Jorge, que sempre tivera boa situação financeira, revela ao leitor (mas não a Macedo) que reconhece que “tudo me parecia errado no mundo, e naquele dia muito mais. Ou o mundo era, todo ele, um erro muito grande”.[3] Apesar de já ter pensado naquelas coisas, Jorge não pensava com os mesmos olhos húmidos e brilhantes de Macedo. Demonstrando ainda certa imaturidade política e social em relação ao outro, mas apontando para uma descoberta que tem início em sua chegada à Figueira da Foz:

Quando cheguei à figueira, a estação era um tumulto de espanhóis aos gritos, com sacos e malas, crianças chorando, enhoras chamando umas pelas outras, homens que brandiam jornais, e uma grande massa de gente comprimindo-se nas bilheteiras.
Eu não entendia nada do que acontecia, e não compreendia como uma revolução – coisa que a minha família passava, em tempos idos, no quarto escuro – podia obrigar as pessoas a uma agitação daquelas e a quererem regressar precipitadamente. As revoluções eram feitas por militares e por revolucionários, que se preparavam para isso, e esmagadas pelos governos que as atacavam, sendo depois saudados por magotes de povo à moda do Minho. [...] para mim uma revolução não era uma guerra. Era umas pessoas e uns regimentos que vinham para a rua, ou uns quartéis que os da rua queriam assaltar. [4]

A falta de consciência política e a imaturidade de Jorge, neste momento da narrativa, entra em choque com a realidade social imposta pela deflagração da Guerra Civil na Espanha. É a partir desta visão e do encontro com os amigos que aos poucos se revelam associados a um movimento revolucionário que o poeta surge.

Não me apetecia comer. Apetecia fugir. Para onde e porquê? E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: “sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias”. Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo... Mas esquecera-me do resto. Com esforço, reconstituía a sequência: Sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar. Não tinha sido aquilo. Não era aquilo. E que significava? Seriam versos? Repeti mentalmente: “Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida”. Novamente as palavras eram outras, ou quase as mesmas mas diversamente. Tirei um papel do bolso, e escrevi: Sinais de fogo os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida”. [...] Era absurdo. Eu fazendo versos? Porquê? Amarrotei o papel e deitei-o fora.[1]

[...]



[1] Idem, p.121.




[1] SENA, p. 67.
[2] DOUBROVSKI, p. 123-124. In: NORONHA, Jovita M. Gerheim (org.). Ensaios sobre autoficção. Belo Horizonte> Editora UFMG, 2014.

[3] SENA, p.120
[4] Idem, p. 67-68.




[1] SENA, Mécia de. Introdução. In: SENA, Jorge de. Sinais de fogo. Porto> Edições Asa, 1997 (7ª edição)
[2] Ibidem, p, 21.
[3] A Revolta dos Marinheiros é considerada pelo Partido Comunista Português um marco na luta contra o Fascismo. A Revolta, segundo o site do PCP, eclodiu nos navios Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque e Dão, fundeados no Tejo, uma sublevação de marinheiros, em 08 de setembro de 1936. Na sua preparação tiveram papel determinante os comunistas e a Organização Revolucionária da Armada (ORA), com intensa intervenção política, num momento em que o fascismo procurava consolidar-se e a resistência democrática ganhava ímpeto. Era objetivo dos revoltosos passar a barra com os três navios e, uma vez ao largo, fazer ao Governo de Salazar, um ultimato, para que fossem libertados e reintegrados 17 camaradas, punidos após uma expedição do Afonso de Albuquerque a Espanha, em agosto, pouco depois de ali ter eclodido a Guerra Civil.
[4] SENA, p. 355.
[5] Idem, p.355-356
[6] Ibidem
[7] Organização política fundada por Lenin após a Primeira Guerra Mundial. Trata-se de um órgão Soviético de controle do movimento comunista internacional.
[8] SENA, p. 365.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

“Culturas, identidades e subjetividades: linguagens em movimento”

Prof. Dr. ª Eunice de Morais (UEPG)
Prof. Dr. Marcos Barbosa Carreira (UEPG)


O CIEL – Ciclo de Estudos em Linguagem – hoje consolidado como congresso internacional – chega a sua oitava edição em 2015, mantendo-se como espaço de reflexão a respeito de questões contemporâneas relacionadas aos desafios da formação de professores pesquisadores. Por isso, a temática eleita para esta edição aponta para as concepções de que há associação insolúvel entre linguagem e cultura; e de que identidades e subjetividades são discursivamente construídas (Bakhtin, 2003; Hall, 2000). Para Bakhtin, a linguagem acompanha todas as atividades essencialmente humanas, portanto culturais, às quais estão associados os gêneros discursivos (poético, pictórico, oral, escrito). A caracterização destes se dá tanto pelo que se faz com a linguagem (mostrar, explicar, descrever, representar) quanto pelos meios linguísticos através dos quais se manifestam os tipos de enunciados e modos de encadeamento destes enunciados. Assim, entende-se que as alterações dos gêneros discursivos remetem à variação dos mundos (universos de linguagem marcadamente culturais). O que nos leva a refletir sobre o apagamento ou a indefinição de gêneros discursivos que se configuram na fronteira, no intermédio de outros gêneros, colocando a linguagem, “multiplicadora de mundos” e “mescladora de mundos” (Bakhtin), em movimento constante.
A partir da ideia de que culturas, identidades e subjetividades são linguagens em movimento e intercambiáveis é que os textos deste volume se coadunam. Há um fio de reflexão e discussão a respeito de temas relacionados aos campos da arte da cultura, da literatura, da filosofia, da sociedade contemporânea e do ensino de língua estrangeira, que nos leva diretamente aos mundos multiplicados e mesclados da e pela linguagem. Em alguns destes textos vemos as linguagens se inter-relacionando e se entrelaçando, abolindo ou tornando complexas as fronteiras entre cartas e crônicas, poesia e história, pintura e biografia.
Vemo-nos intensamente imbricados no universo do hibridismo. Culturas, identidades e subjetividades adquirem em nosso tempo a impossibilidade, talvez benéfica, da definição, do enquadramento único e central. Vivemos no tempo do entre-lugar, do terceiro elemento nascido da conjugação da pluralidade. Tempos da modernidade líquida de Bauman, das comunidades imaginadas de B. Anderson, de identidades culturais híbridas, do sujeito descentrado, múltiplo e relativizado. A linguagem, portanto, é o meio pelo qual se dá corpo e se revelam culturas, identidades sociais e culturais e subjetividades.
Do lado de dentro deste conjunto de ideias marcantes da contemporaneidade é que os textos que compõem este livro vêm refletir e problematizar, sob perspectivas diversas, os movimentos culturais, identitários e subjetivos, observando-os por meio de comparações, análises ou aproximações de caráter biográfico, conceitual, contextual e social. Assim, entendendo que aspectos da cultura, da identidade e da subjetividade não são estanques, propomos uma composição do volume em quatro partes significativas: retratos, palavra e poder, linguagens em movimento e ensino.
A primeira parte é composta pelos ensaios “Selos e sigilos: correspondência de Clarice Lispector” e “Retratos do delírio” da professora Nádia Gotlib e do professor Daniel de Oliveira Gomes, respectivamente. Colocar os textos assim ladeados é, em última análise, uma provocação, pois apontam para perspectivas aparentemente desconexas e gêneros de produção e investigação absolutamente diversos. No entanto, preciso destacar nesses ensaios a questão sobre a possibilidade de representação fiel, integral e real do sujeito. O retrato de Clarice Lispector ganha contornos e definição a partir das leituras e análises da sua correspondência publicada; e Gotlib destaca esta importância a partir da leitura da obra de Olga Borelli. Segundo Gotlib:

O livro [de Boreli] pode ser considerado uma porta de entrada para o desvendamento de uma escritora, pois ali encontram-se notas valiosas sobre seu método e concepção de escrita, sua postura diante da vida, além de hábitos, amizades, afetos, e tantos outros itens de importância para se traçar os contornos de uma fisionomia intelectual e artística. De fato, ganha realce, no livro, ‘o retrato da escritora’. Mas se assim é, o livro também pode ser considerado um exemplo de como não se editar uma correspondência...” (GOTLIB)

Os problemas quanto à edição das cartas remetem, neste caso, à questão do sigilo ou da censura de trechos das correspondências o que, de certa forma, borra ou turva o retrato pretendido. E outro momento do ensaio, a autora afirma que o sucesso das publicações de carta de Clarice deve-se ao fato de que “Observa-se uma voz que está voltada, sim, para o seu entorno, mas sobretudo uma voz que está atenta ao território da intimidade. E que descreve essas profundezas da alma com detalhes dignos de uma personagem bem construída.” (p.   ). Temos aqui um movimento de linguagem que faz um gênero documental, como as cartas, transitar pela ficção, o que fará a autora afirmar a seguir que “algumas peças desse conjunto epistolográfico beiram outro gênero, o das  crônicas, não só pela linguagem solta, aberta a qualquer tipo de motivo inspirador, mas também pelos toques de encantamento e argúcia de observação.” (Negrito meu, P....)
Para além desta movimentação, desse rompimento de fronteiras entre os gêneros analisados, há a questão da construção do retrato da ficcionista que se dá pela soma das correspondências à sua própria obra literária. A pergunta que nos salta após a leitura do texto de Gomes é: que retrato é esse? A linguagem que compõe esse retrato de Lispector é diferente do retrato pictórico de Van Gogh, mas parece que o estatuto de não representação se mantém. Segundo Gomes “O retrato é visto como algo que assegura a presença (e a ausência) do sujeito e não propriamente o representa, nesse sentido, juntamente com Jean-Luc Nancy, não podemos ler o retrato como mera imagem de um sujeito preexistente.” (GOMES, p.    ) Não haveria em cada carta de Lispector uma presença (e uma ausência) que é passível de transformação e mudança?
                        O ensaio de Gomes investiga a “ex-posição em retratos de Foucault, Artaud e, em especial, Van Gogh”. Para o autor, “nestas três personalidades, noto uma questão quanto ao retrato de si para si, como insano do pensar, onde o sujeito de fundo é ausente, um retrato em que o sujeito do retrato é o sujeito mesmo. A efetividade e a essência do sujeito está, assim, não mais que no retrato, exclusivamente”. Essa descrença no potencial mimético do retrato, em seu caráter representativo da vida e do espírito, segundo Gomes, levam Vangogh, Artaud e Foucault a acreditarem na impossibilidade de um movimento dialético entre interioridade e exterioridade.
A segunda parte reúne os ensaios “A Palavra definitiva – Escritura e militância na literatura argentina (Conti, Urondo, Walsh)” e “La inesperada y sutil historia de amor de una mujer fea, chueca y bizca”, de André Queirós e Cecilia Luque, respectivamente.   Consideradas aqui as distâncias de estilo dos ensaístas e a focalização emblemática dos tipos de violência (do Estado e de gênero) acercada pelos textos, observa-se que é por meio da linguagem literária que se estabelecem as relações de poder em contextos sociais diversos.
Cecilia Luque analisa o modo como a violência contra a mulher é explorada pela narradora argentina, Angélica Gorodischer, em seu conto “La cámara oscura” [“A câmara escura”] (1983), e pela cineasta María Victoria Menis, no filme homônimo de 2008, baseado no referido conto, apontando semelhanças de concepção da violência contra a mulher e diferenças no plano retórico das construções narrativas.  Ao introduzir a temática dos textos em estudo, a pesquisadora afirma que:

Nós, seres humanos, alcançamos a existência social em e pelas relações de saber-poder que estabelecemos com os outros em um contexto social dado, relações que nos assinalam possibilidades e restrições. Talvez as relações mais importantes sejam as que nos outorgam o reconhecimento, a confirmação de que somos sujeitos válidos, com direito e autoridade para participar da vida e do mundo por meio de nossas ações e nossas palavras. Por isto, a maior violência simbólica que se pode exercer sobre um ser humano é negar-lhe esse reconhecimento.

É pela ausência deste reconhecimento e pela negação deste direito à participação da vida e do mundo que a protagonista do conto e do filme, Gertrudis, sofre a violência familiar e foge com o fotógrafo, abandonando o sistema patriarcal em que a linguagem do amo que fala do outro e o substitui por um diálogo com o outro. Segundo a leitura de Cecilia Luque:

Tanto o conto quanto o filme mostram como, nas sociedades rurais latino-americanas do início do século XX, sociedades só incipientemente burguesas e ainda profundamente patriarcais, uma mulher “feia” via drasticamente reduzidas as suas possibilidades de encontrar um lugar produtivo legítimo na sociedade e corria o risco de tornar-se um “fardo” que sua família não poderia “tirar de cima”. (LUQUE)

Esta condição de subalternidade e a desvalorização social feminina é apresentada no conto e no filme por meio do coloquialismo e da condição de precariedade, dado pelo fato de serem declaradas “feias” negando-lhes, portanto, o reconhecimento como sujeito social válido.  
A proposta do ensaio é demonstrar que “Gorodischer e Menis exploraram diferentes aspectos deste particular processo de subjetivação feminina, e o fizeram com retóricas diferentes”. (LUQUE, p. ) Fica claro, portanto, que é pela linguagem que os espaços de poder são demarcados, tornando o conto e também o filme narrativas de reivindicação, de questionamento e de reflexão a respeito do reconhecimento e da valorização da mulher na sociedade contemporânea. Embora as narrativas em estudo simbolizem “as formas com as quais as tecnologias patriarcais do eu constituíram a identidade das mulheres e as definiram como sujeitos subalternos” (LUQUE), a pesquisadora deixa claro que enquanto o conto de Gorodischer refletia as preocupações das feministas dos anos 60 e 70, Menis faz uma reinterpretação no filme, convergindo para as preocupações feministas a partir dos anos 90: “a necessidade de ressignificar o corpo da mulher que tem sido historicamente colonizado, alienado e definido pelo olhar patriarcal; ressignificar a libertação do desejo feminino como condição de subjetivação das mulheres”. (LUQUE.)
André Queirós, em “A palavra definitiva – Escritura e militância na literatura argentina (Conti, Urondo, Walsh)”, não fará contraposição de gêneros, mas nos coloca também diante de produções literárias que denunciam, marcam uma posição de poder em contraponto ao discurso da violência do Estado de Exceção, imposto na Argentina da década de 1970. O olhar do revolucionário que grita e age contra um discurso de poder ditatorial, marcado pela violência e pelo assassinato, é apresentado e como relato por uma voz que em muitos momentos faz saltar a linguagem do ensaio para o da ficção e não raro elas se coadunam. Essa é a voz de André Queirós que nos toma de assalto e nos prende em busca da palavra definitiva dos autores argentinos que foram também atores de seu tempo.
Haroldo Conti, Francisco “Paco” Urondo e Rodolfo Walsh denunciaram e enfrentaram, por meio da linguagem, a violência do Estado que, de acordo com Queirós mediava as relações entre o capital e as massas, favorecendo o primeiro. André Queirós faz um percurso histórico, localizando os autores e contextualizando suas produções e marcando um movimento discursivo e temporal. A feliz ideia retomada do livro de Walsh, Operacion massacre, “três fuzilados que vivem”, cabe perfeitamente como mote também para o ensaio de Queirós, pois os três autores permaneceram pela linguagem. Retrataram, em cartas, poemas, romances e entrevistas, o contexto político marcado pela violência do regime ditatorial no país.
É através dos movimentos da linguagem, portanto, que Cecilia Luque, assim como Queirós, nos fazem refletir e compreender as relações entre linguagem e poder.  No plano das discussões sobre identidades sociais e suas relações com a linguagem, podemos afirmar que ela pode ser definidora da precariedade do sujeito, do mesmo modo que pode ser elemento propiciador da sua permanência enquanto discurso de poder.
Na terceira parte deste volume, o debate se dá especificamente no campo das relações entre a literatura e outras linguagens. O passeio proposto pelo texto do professor e pesquisador Evanir Pavloski nos faz caminhar entre linguagens que antecedem a escrita, como as pinturas rupestres, e suas variações nos modos de leitura do mundo. Segundo Pavloski,

A paulatina evolução dos signos gravados nas paredes das cavernas possibilitou a deflagração do terceiro processo que, juntamente com o perceptivo e o cognitivo formam a noção de representação aqui enunciada: o fabulativo. Em outros termos, as figurações pictóricas assumem contornos de relato e a disposição dos desenhos perde a sua aleatoriedade. Os desenhos de corpos, animais e espaços passam a estabelecer relações de complementaridade e a formar um quadro comunicativo maior. A narratividade, substância fundamental da literatura, surge em estado bruto.

As imagens, portanto, constituem-se como narrativas e passarão, mais tarde a integrar as obras literárias não apenas para promover a visualização do que era exposto pelas palavras, mas também “como um subtexto que ora as complementava, ora as suplementava”. Do encontro dessas esferas de arte (cinema, literatura, pintura, fotografia) e de percepções humanas (neurofisiológicos, cognitivos e simbólicos) surge, muitas vezes, segundo Pavloski, o que ele chamaria de “conflito de imaginários”, ou seja, “construções imagéticas diferentes que ao serem transpostas para outra linguagem desnudam as particularidades das leituras realizadas”. A revolução tecnológica que vivemos hoje propicia uma multiplicidade da produção, da circulação cada vez mais rápida e global, e da recepção de textos marcados pelo hibridismo. Blogs, Chats, e-mails, fotologs, e-books são apenas alguns destes canais de caráter gráficos, imagéticos, orais, sonoros que se proliferam e são incorporados ao cotidiano de pessoas com tempo e recursos. Essa revolução tecnológica trará, como afirma Pavloski, consequências para o mercado editorial dos textos literários e para a criação de novos gêneros de produção, como a literatura “ergodica”.  É preciso ressaltar, portanto, que o surgimento da escrita não eliminou a oralidade e do mesmo modo a literatura permanecerá, não obstante o surgimento do cinema, da fotografia e tantas outras linguagens.
Paulo Ramos, seguindo a mesma linha teórica de Pavloski, defende a especificidade de cada campo (literatura, teatro, quadrinhos), cada um com uma linguagem autônoma e própria, e aponta para “inegáveis diálogos” entre esses campos –  como entre quadrinhos e literatura. No artigo “Literatura e quadrinhos: o cisne e o patinho feio”, Ramos apresenta uma discussão por meio do caminho que conduz as histórias em quadrinhos para a transformação de patinho feio a cisne, no processo de aceitação e reconhecimento do caráter e do potencial artístico do gênero. Desde a marginalização das histórias em quadrinhos no início do século XX, no Brasil, até a sua ascensão e reconhecimento como um gênero artístico válido e de alto valor cultural e comercial, estende-se um longo período e vários equívocos destacados pelo autor. O pesquisador apresenta, então, quatro fatores que contribuíram e têm contribuído para este reconhecimento: 1) a presença de quadrinhos no ensino; 2) as adaptações literárias; 3) o uso do formato livro, que aproxima os quadrinhos do texto literário; e 4) o aumento do número de pesquisas sobre quadrinhos nos programas de literatura. A busca por novos diálogos entre a literatura e os quadrinhos, no sentido de uma aproximação dos gêneros, é o que propõe Paulo Ramos. No movimento das linguagens, sombras e luzes se entrelaçam e fazem surgir novos caminhos.
Por fim, o capítulo da professora-pesquisadora Elaine do Vale Ferreira Borges, subsidiado pela área de ensino de línguas adicionais, é a quarta e última parte na organização deste livro. Intitulado “Language teaching: a look with the eyes of complexity”, o capítulo discute novas perspectivas que surgem nos Estudos da Linguagem a partir do advento do paradigma da complexidade no campo da Linguística Aplicada. Para tanto, a autora apresenta seis exemplos de sistemas adaptativos complexos (SAC) que emergiram contemporaneamente na área, sendo dois de sua própria autoria e um terceiro em coautoria. Esses sistemas são: linguagem como SAC, aquisição de segunda língua como SAC, identidade como SAC, abordagem de ensino e de aprendizagem de línguas como SAC, planejamento de ensino de línguas como SAC e a formação de professor de línguas como SAC. 
Borges explica que, essencialmente, um SAC pode ser entendido como qualquer fenômeno científico que emirja da interação de seus vários elementos (sem controle centralizado), sendo dinâmico, aberto, vivo, não-linear, auto-organizável, adaptável, imprevisível e altamente sensível às condições iniciais; apresentando um comportamento particular que pode ser reconhecido como um atrator caótico. A autora enfatiza, ainda, que todo SAC possui sistemas e subsistemas aninhados em sua constituição e que, no todo, se manifesta na forma de um fractal geométrico, sendo esse o formato de algumas das figuras dos SAC apresentas por ela no capítulo.
Para subsidiar a discussão, inicialmente, Borges destaca a importância das metáforas conceituais (Lakoff & Johnson, 2001) e científicas (Boyd, 1993) na concepção de sistemas caóticos na LA, já que muita da terminologia utilizada é proveniente das ciências exatas e biológicas. Nesse contexto,as discussões empreendidas pela autora também são fundamentadas nas visões wittgeinsteiiana de jogos de linguagem e kuhniana de paradigma nas ciências sociais. Ao final, a autora argumenta sobre a visão que possui da situação do pós-método no âmbito atual da complexidade e chama a atenção para a necessidade de um olhar complexo dos linguistas aplicados para os fenômenos da linguagem a fim de se compreender o que ela denomina de pedagogia complexa de línguas adicionais.

Sendo um evento que responde aos interesses científicos e educacionais de profissionais formados e em formação, nas áreas envolvidas, o CIEL se configura como um espaço de reflexão das questões mais prementes do universo que se constrói a partir dos desafios de formar professores e pesquisadores. Por considerar que é dever da universidade pública promover a pluralidade no ensino, na pesquisa e na extensão, o CIEL procura, da maneira mais democrática possível, colocar-se à disposição de diferentes concepções de linguagem. Pretende-se, neste sentido, manter na pauta as inquietações daqueles que não apenas escolheram o magistério para a ele dedicar suas energias profissionais, mas que também têm o privilégio e a responsabilidade de contribuir substantivamente para a formação de novos professores. O que se espera é que os artigos e ensaios publicados neste livro contribuam para o alcance desses objetivos, tão caros aos organizadores da oitava edição do CIEL (de Estudos de Linguagem) e da primeira edição internacional do CIEL (I CIEL – Congresso Internacional de Estudos de Linguagem).

domingo, 10 de setembro de 2017

Vitorino Nemésio: o Rio de Janeiro como Medium-De-Reflexão

Eunice de Morais

O olhar é a última gota do ser humano
(W. Benjamin)

A crítica de Walter Benjamin, fundamentalmente, revela-se como atos de reflexão articulados em cinco níveis. No primeiro nível está a autorreflexividade da crítica. Neste nível observamos que Benjamim está sempre a refletir sobre sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na sociedade. Em segundo lugar, faz-se uma leitura detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada, a qual será sempre analisada, segundo Novalis, a partir de seu próprio ideal e não de um modelo a-histórico. Em terceiro lugar, verificamos a reflexão sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin, partícipe de uma forte tradição alemã, desenvolveu o tema da teoria dos gêneros literários, como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador, de 1936. Em quarto lugar, elabora-se uma reflexão crítica sobre a sociedade. Observamos que a crítica foi praticada por Benjamin, a partir do seu presente e voltada para si, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado “tal como ele aconteceu”. Por último, o quinto nível reflexivo articula todos os níveis anteriores. A reflexão sobre a teoria da história feita por Benjamin critica os modelos da evolução histórica, tanto liberais como marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história como acúmulo de catástrofes (SELIGMANN SILVA, 2016). Queremos observar, a partir desse cinco níveis do ato reflexivo na crítica benjaminiana, que cada um deles está sempre a voltar-se para a identidade do crítico refletida no texto, para a autorreflexividade. Assim, a ideia de espelhamento do eu em todo ato de crítica ou de produção artística atravessa toda a proposta teórica de Benjamin. É assim que vemos em Rua de mão única e Imagens de pensamento o reflexo das metrópoles, um texto-cidade que se constrói a partir do presente e do sujeito crítico transeunte; a cidade é o meio especular através do qual são refletidas as imagens (social, histórica, crítica e literária) que cada uma das metrópoles representa ou significa para o eu que a observa.
Rua de mão única (1928/2013), de Walter Benjamin, compõe-se de um conjunto de aforismos através dos quais o autor pretende “Captar a atualidade como o reverso do eterno na história e tirar uma impressão dessa face escondida da medalha. De resto o livro deve muito a Paris, é uma primeira tentativa de escrever minha relação com esta cidade.” (BENJAMIN, p.123).
O olhar de Benjamin através da metrópole moderna, como palco de grandes transformações, se constitui em imagens de pensamento que não apenas retratam a cidade, mas a consideram como medium-de-reflexão[1]. Tanto em Rua de Mão única quanto em Imagens de pensamento, Benjamin provoca o leitor com reflexos da imagem e espaços da cidade que incidem, atravessam e transformam a si mesmo, levando-o a uma reflexão sobre o modo como o habitante da metrópole se relaciona com o texto-cidade. Weimar, Moscou, Paris, Marselha, Nápoles são formas a serem apreendidas e subvertidas, são medium-de-reflexão e portanto refletem, tal qual espelho, as tensões da modernidade. O transeunte diante dos espaços e informações citadinas reagiria tal como Benjamin em “Mercadoria a granel: expedição e embalagem”:

De manhã cedo, atravessava Marselha de automóvel para apanhar o trem, e à medida que passavam por mim lugares conhecidos e outros desconhecidos, ou outros que só vagamente me lembrava, a cidade, nas minhas mãos, transformava-se num livro ao qual ainda deitava uma rápida vista de olhos antes de ele desaparecer da minha vista no caixote do sótão, sabe Deus por quanto tempo. (BENJAMIN, p. 52).

Em Infância berlinense, o transeunte benjaminiano de Marselha tem a cidade nas mãos como um livro que desaparece no caixote do sótão, pelo tempo indeterminado da memória. Ele afirma não haver nada de especial em “não nos orientarmos numa cidade. Mas perdermo-nos numa cidade, como nos perdemos numa floresta, é coisa que se precisa aprender” (BENJAMIN, p.78). Aprender a perder-se na floresta significa retornar ao passado primordial e primitivo da urbe e do homem. Para Benjamin, é preciso “escavar e recordar” para reconhecermo-nos no presente. A memória não é instrumento, mas meio para exploração do passado, “é o meio através do qual chegamos ao vivido, do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado tem de se comportar como um homem que escava” (BENJAMIN, p. 101). O termo medium-de-reflexão, utilizado por W. Benjamin pretende, portanto, apontar o potencial da obra de arte na elaboração do conhecimento crítico e a metrópole moderna é para ele o painel luminoso em que se fundam e espelham as reflexões do leitor. Nesta proposta de trabalho recuperamos a expressão com o intuito de observar esse potencial crítico e principalmente intimista presente, na poesia de Vitorino Nemésio, na construção de imagens da cidade do Rio de Janeiro.
Entendemos que há uma aproximação possível entre o olhar sobre a grande cidade contemporânea, que marca a forma e o estilo da escrita Benjaminiana da história, e o olhar poético de Vitorino Nemésio sobre a cidade do Rio de Janeiro, no sentido de que as obras de ambos revelam a cidade como espaço mediador e veículo informativo das trans-formações históricas e culturais. O Rio de Janeiro nemesiano é, como veremos, reflexo dos sentimentos de brasilidade revelada e exaltada, associado ao saudosismo e ao pertencimento açoriano do poeta. (...)
     



[1]  Termo usado pelos Românticos de Iéna para designar o potencial da obra de arte para proporcionar o conhecimento crítico. TEXTO COMPLETO SERÁ PUBLICADO NA REVISTA "CONVERGÊNCIA LUSÍADA" - Real Gabinete Português de Leitura.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

ROMANCE HISTÓRICO, paródia  E CONDIÇÃO NACIONAL
ESTUDO SOBRE A FICÇÃO DE ANA MIRANDA

Eunice de Morais (UEPG)

Na segunda metade do século XIX, o sucesso de mercado e o prestígio estético conquistado pelo romance histórico entram em decadência e, no início do século XX torna-se déclassé. Seguindo as reflexões apresentadas por P. Anderson[1] e F. Jameson a respeito do assunto, entendemos que a variante modernista para o tipo de romance histórico teorizado por Lukács torna-se impossível, devido à ressaca em relação ao melodrama deixada pela Guerra de 1914 e ao efeito crítico do Modernismo que privilegia a percepção imediata. De acordo com Anderson, a ressurreição do romance histórico dá-se com a publicação de Memórias de Adriano (1951), de Margarite de Youcenar, e com a eleição de O leopardo (1963), de Lampedusa, como melhor romance histórico do século XX. Esta ressurreição foi também uma mutação e anuncia a chegada do pós-modernismo em que “a mudança singular mais notável operada na ficção histórica foi a sua reorganização geral em torno do passado.” [2] Linda Hutcheon, já em 1991, aprofundava esta questão observando  que a recuperação do passado no pós-modernismo

Confronta o passado com o presente, e vice-versa. Numa reação direta contra a tendência de nossa época no sentido de valorizar apenas o novo e a novidade, ele nos faz voltar a um passado repensado, para verificar o que tem valor nessa experiência passada. Se é que ali existe mesmo algo de valor. Mas a crítica de sua ironia é uma faca de dois gumes: o passado e o presente são julgados um à luz do outro. [3]

Parece-nos que tanto P. Anderson quanto Linda Hutcheon descartam o caráter nostálgico da ficção histórica da pós-modernidade apontado por Jameson, embora concordem com o mesmo quanto ao fato de que a verdade deixou de ser “abordada pela via da verificação e da verossimilhança, para privilegiar o poder imaginativo do falso e do fictício, da mentira e do engodo fantásticos” [4]. Segundo Jameson, a versão pós-moderna do romance histórico não envolveria a dúvida, mas a multiplicidade de versões fantásticas e autocontraditórias da história, não sendo suficientes para configurar uma forma histórica, como o romance histórico, em que “as grandes dimensões do tempo histórico e do tempo existencial podem se conectar com os dois fios que, postos em contato, voltam a acionar o motor desse gênero.” [5]  Considerando o posicionamento teórico de Perry Anderson e de Linda Hutcheon a respeito do caráter renovador da ficção histórica pós-moderna, denominada por Hutcheon de "Metaficção historiográfica" (um quarto modo de narrar), ao apropriar-se de fragmentos da história, desenvolvemos a seguir análises que apontam para uma atualização de discursos de nação[6] através de recursos estéticos como a paródia e estilísticos como a ironia.
A paródia é, conforme Hutcheon, um dos modos maiores da construção formal e temática de textos no século XX, devido à proposta de auto-reflexividade formal, que oferece ao artista um lugar onde possa falar para e a partir de um determinado discurso, mas sem recuperá-lo totalmente. [7] Considerando a produção de romances históricos no Brasil, poderíamos dizer que tem se estendido ao século XXI. A paródia, definida pela pesquisadora como “imitação caracterizada por uma inversão irônica que nem sempre se dá às custas do texto parodiado” ou como “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” [8], quando se utiliza de estratégia irônica, pode apresentar o sentido de contestação aos sistemas narrativos centralizados, totalizados, hierarquizados e fechados, porém sem aspirar à sua destruição. [9] Recorrer à paródia e à ironia, nesse sentido, traz como consequência a construção de romances que apresentam tanto o revival de discursos de nação, ou da ausência deles, quanto questionamentos sobre a instituição destes discursos.
Como modo de apropriação textual, a paródia pode atuar no âmbito de vasta gama de dimensões textuais. Segundo Hutcheon, tem havido paródias

ao estilo de um período ou movimento, bem como a um artista específico, onde encontramos paródias a obras individuais ou a partes delas, ou aos modos estéticos característicos de toda a oeuvre desse artista. As suas dimensões físicas podem ser tão vastas como o Ulisses, de Joyce, ou tão pequenas com a alteração de uma letra ou palavra de um texto. [10]

            Nos romances de Ana Miranda, observamos que há variações na dimensão da paródia. Fica-nos clara a apropriação dos estilos literários de cada poeta, tornando cada romance a expressão de um trabalho que privilegia a linguagem como elemento incorporador ou tradutor de um espírito de época. É a partir e através deste trabalho com a linguagem que se institui nos romances o traço estilístico de cada poeta biografado e a ambientação cronotópica. O empréstimo paródico assinala, nas narrativas, a intersecção da criação e da recriação, da invenção e da crítica. As narrativas transitam entre estilos e ambientes do passado histórico-literário brasileiro e, de dentro deles, propõem uma visão renovada.
Uma das principais paródias presentes nos romances em foco dá-se em relação ao gênero biográfico. Apesar de constituírem-se sobre o tema biográfico, os romances corrompem a estrutura do gênero quando apresentam um recorte específico da vida e da obra dos poetas, compondo uma trajetória de vida por estilhaços, fragmentos documentais que flutuam na fronteira de um encontro entre a ficção e a história. Vozes de expressão nacional, estes poetas são, eles mesmos, estilhaços da história da nação brasileira sobre a qual perdemos a crença do domínio absoluto e mesmo da necessidade desse domínio. É Lyotard quem denuncia o declínio dos grandes relatos:

Na sociedade e cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna a questão da legitimidade do saber coloca-se em outros termos: o grande relato perdeu sua credibilidade seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido. [11]

Assim, o texto pós-modernista busca valorizar a fragmentação, a heterogeneidade, às margens do conhecimento. O passado de glórias e de grandes batalhas pela emancipação do país é substituído pela batalha individual dos poetas que, como a flor que rasga o asfalto e se impõe ao meio, vêm marcar um tempo e um espaço na literatura brasileira. Assim, ao invés de citar poemas ou fragmentos de poemas relacionados a características, temática ou episódios da vida dos poetas, os romances incorporam estes fragmentos a cenas e vozes da narrativa. O deslocamento dos versos para a narrativa propõe uma resignificação dos poemas apropriados, os quais, em geral, são utilizados nos textos biográficos como resultantes de conflitos pessoais, políticos ou amorosos dos poetas. O caráter paródico das apropriações textuais se efetiva pela mudança de função que estes fragmentos exerciam no texto parodiado. O que era matéria para justificativa, exemplo, explicação, comprovação de fatos e temáticas nas biografias, passa a funcionar como recurso de ambientação, posicionamento ideológico e mesmo como fonte informativa, nos romances.
A paródia é, portanto, um modo de colocação estética em primeiro plano nestes romances históricos, pois “define uma forma particular de consciência histórica, por meio da qual a forma é criada para se interrogar face a precedentes significantes; é um modo sério” [12]. De acordo com Hutcheon, é esta consciência histórica da paródia que lhe dá o potencial para, simultaneamente, enterrar os mortos, por assim dizer, e também para lhes dar nova vida.
Deste modo, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos e Gonçalves Dias são apropriados enquanto construção textual historiográfica e literária. Lembramos, aqui, a dessemiotização pós-moderna do discurso ficcional discutida pelo professor Rogério Lima, ao considerar a construção do romance Memorial do fim: a morte de Machado de Assis (1981), de Haroldo Maranhão[13]. Os romances de Ana Miranda, de modo semelhante, são construídos a partir de signos cristalizados na historiografia e na literatura. A transcontextualização discursiva permite a recodificação irônica, marcando a paródia como duplicação textual – que unifica e reconcilia – e também como diferenciação – que coloca em primeiro plano a oposição irreconciliável entre textos e entre texto e ‘mundo’. [14]
Sobre o aspecto “mundano” da paródia, Linda Hutcheon afirma que ela faz uma conexão com o mundo em pelo menos dois níveis: o da relação da paródia com a sátira e o da necessidade de considerar todo o ato enunciativo em qualquer observação da paródia. É preciso, no entanto, separar a paródia e a sátira, pois ambas são mundanas, no sentido de que conduzem o mundo à arte. No entanto, podem ser diferenciadas por seus alvos e afinidades diversas com a ironia, tropo retórico comum a ambas. A sátira paródica possui objetivo mais extramural – quer mudar a sociedade e possui, portanto, um ethos negativo forte – enquanto que a paródia satírica possui objetivo intramural – pretende questionar convenções e discursos. [15] Em síntese, a sátira é uma lição, a paródia é um jogo e, neste jogo, o texto parodiado possui autoridade e valor de troca em relação às normas literárias. Esta bidirecionalidade da legitimidade da paródia, segundo Hutcheon, dá-se por seu status ideológico paradoxal, em que pressupõe autoridade e transgressão, repetição com diferença.
Nos romances em análise, este traço paradoxal da paródia aparece em diversos planos, desde a relação entre a afirmação do caráter ficcional das obras, anunciado nas capas e folhas de rosto, e as referências e notas explicativas sobre a pesquisa historiográfica, sugerindo a justaposição de gêneros como a ficção e a história; até o deslocamento de trechos de poemas para o plano narrativo, incorporados a novos contextos, ampliando ou reduzindo sentidos; e na própria refiguração dos estilos literários.
Entre os planos de realização da paródia irônica nos interessa observar, de modo mais atento, a refiguração da condição nacional em cada romance. A existência ou não de um projeto nacionalista e o modo de atuação dos poetas no âmbito político e literário do país parecem ser definitivos em seus projetos literários, bem como no processo de formação do Estado e da literatura nacional. A paródia, neste sentido, é o recurso que possibilita questionar discursos através e a partir daquilo que os constitui, a linguagem.
Partimos, portanto, da idéia de que os romances históricos Boca do inferno (1989), A última quimera (1995) e Dias e dias (2002) são construções paródicas: sobreposição de um texto apropriado, parodiado, (da historiografia e/ou da literatura) e o texto paródico; tendo a ironia como estratégia semântica para a composição do plano da significação dos romances, em que ocorre a justaposição de sentidos, do dito e do não dito. Entendemos, assim, que a apropriação textual apresentada nos romances tanto homenageiam quanto discutem e questionam discursos de nação ou a sua ausência, que serviram a projetos literários do passado. Estes discursos revelam o Brasil barroco, romântico e modernista como “comunidades imaginadas”, de modo que a condição nacional do passado constitua uma face paralela e integrante da condição nacional do presente. Embora não possamos visualizá-las ao mesmo tempo, é da visão alternada destas variantes da condição nacional que se constitui um outro discurso de nação que não exclui ou nega os discursos anteriores. Nisso constitui-se o irônico que, repetimos, acontece através e a partir da interpretação do leitor.

1.1  Boca do Inferno: desconserto nativista

O caráter paródico do romance Boca do Inferno se dá pela utilização do discurso histórico como fonte de investigação para o questionamento de seu próprio estatuto de verdade, sua autoridade e seu processo de construção. Assim, a história como fonte de pesquisa fornece à narrativa do romance dois focos marginais, que ganharão a função de centro como forma de ataque à centralização proposta pela narrativa canonizadora da história. Estes dois focos sintetizam o caráter biográfico e histórico do romance, apresentando a vida de um poeta desregrado, porém visto como ser essencial do espírito da época colonial, a partir de um fato histórico, o crime, lembrado por narrativas biográficas mais como tempero picante do que como fato realmente importante para a história ou para a formação/posição ideológica ou política do poeta. No entanto, na narrativa ficcional, este  episódio histórico amarrado à vida e à obra do poeta barroco constitui um marco no processo de transformações políticas e literárias importantes para a formação cultural e identitária no Brasil.
Pedro Calmon, narra a “estrondosa morte do alcaide-mor” de modo bastante sintético, porém com alguns detalhes importantes e intitula o desfecho como “O crime”. É notório que o historiador dá importância à exatidão temporal dos fatos, enquanto que a ficcionalização deste fato privilegia a descrição do espaço e da visualização da cena.

Às 10 horas da manhã de 4 de junho de 1863, oito mascarados surpreenderam Francisco Tele na rua do colégio.
Ia na serpentina, aos ombros de dois pretos. A tiro, derrubaram os condutores; impediram o alcaide de saltar da rede desembainhando a espada; e um deles, arrancando a máscara (o tenente Antônio de Brito de Castro), bradou: Matá-lo-ei de frente e com meu pulso, como cavaleiro. E vibrou-lhe o golpe mortal.
Deixaram-no agonizar e fugiram para o Colégio dos padres. [16]

Vejamos como se dá a apropriação paródica no romance, que não apresenta a data, nem o horário do acontecimento. Sabemos apenas que é pela manhã:

Tensos, alertas, com os capuzes em torno da cabeça e as armas empunhadas, os oito homens se emboscaram nos desvãos da rua de Trás da Sé. Dois a dois, aguardaram.

            A mudança do local do crime é ficcionalmente importante, pois sugere que os assassinos se escondiam atrás da igreja, indicando, simbolicamente, a posição intermediária, mas não isenta, dos jesuítas na empreitada. No entanto, trata-se do mesmo local, pois a catedral da Sé, na Bahia, localizava-se na mesma rua do Colégio. A narrativa do romance segue acrescentando a presença de um molecote a auxiliar os conspiradores, chamando a atenção do alcaide e fazendo-o abrir as cortinas da liteira para ouvir o brado dos encapuzados:
‘Morte ao alcaide-mor Francisco Teles de Meneses, áulico lambe-cu do Braço de Prata’. Gritou um dos homens da emboscada. Os olhos do alcaide-mor cintilaram ao ver os encapuzados cercando a liteira. Fechou as cortinas, nervoso. Os escravos mal tiveram tempo de se defender, atingidos por tiros de bacamarte caíram ao chão. [17]
[...] Um dos homens retirou o capuz. O alcaide empalideceu ao reconhecer Antonio de Brito, o inimigo que havia pouco tempo tentara matar. Por um momento tudo pareceu parar. Os homens ficaram estáticos como imagens de pedra.
[...] O alcaide-mor meteu a mão na cintura, tirou a garrucha e atirou em Brito, acertando-o no ombro. Um conspirador, com um golpe de Alfanje, decepou a mão direita do alcaide. [18]

A partir daí a narrativa do romance acrescenta nova tentativa de reação do alcaide, mas “Antonio de Brito foi mais rápido, cortando fundamente a garganta de Teles de Menezes com seu gadanho” [19]. Apesar do golpe final no peito o alcaide encontra forças para dizer: “O Braço de Prata vai me vingar”. O grupo foge em direção ao Colégio dos jesuítas, levando a mão decepada.
A morte do alcaide para a biografia do poeta significa o início das perseguições políticas e da decadência financeira, mas para a Cidade da Bahia e para a colônia significava a desestabilização do poder instituído pelo governador e seus comparsas que, na visão de Gregório de Matos, Antonio Vieira e Gonçalo Ravasco, impediam os avanços políticos, culturais e econômicos da colônia. Como consequência do crime, observamos que o início do romance marca o estado de decadência cultural, moral, política e ética da Cidade e o poeta acompanhando-a pela janela, mas à medida que a narrativa avança e as perseguições se fortalecem, o poeta decaído, após o exílio, passa a perambular pela cidade. Ele, de observador passa a andarilho e a cidade andrajosa tem, enfim uma manhã luminosa com brisa fresca que traz a notícia da destituição de Antonio de Souza do cargo de governador da Bahia e a restituição de Gonçalo Ravasco ao cargo de secretário de Estado e da Guerra. Aparentemente, restitui-se a ordem.
O romance que apresentamos como construção paródica vem questionar também as categorias de gênero, pois se assemelha tanto à narrativa biográfica quanto à narrativa histórica, mas esta semelhança se dá no nível da diferença, já que insere estas narrativas no mundo da ficcionalidade, onde a objetividade, a finalidade e a autoridade narrativa são contestadas, mas não destruídas, pois o questionamento que se faz sobre a autoridade e a objetividade do discurso histórico depende da existência deste discurso que lhe serve de instrumento. É preciso, portanto, que o romance apresente o discurso da história para, então, subvertê-lo e esta subversão deve geralmente ocorrer no âmbito ficcional. É dando voz aos personagens históricos, como testemunhos de um outro ponto de vista possível sobre a história, que o romance põe em discussão a autoridade do discurso histórico. Este outro ponto de vista cria um novo centro narrativo que era antes visto como periférico, não por ser um acontecimento menos importante, mas porque um outro ponto de vista havia sido eleito como verdade histórica hierarquicamente superior, de acordo com interesses ideológicos difundidos em tempos, espaços e culturas diferentes.
Gregório de Matos, no romance, é expressão tanto do colonizador, por formação, quanto do colonizado, pela experiência vivida. É neste sentido que o poeta é um ex-cêntrico que se identifica “com o centro ao qual aspira, mas que lhe é negado” [20]. Ou seja, o poeta se identifica com o poder maior que está na Europa e, por sua formação intelectual europeizada, aspira a este poder que, no entanto, lhe é negado e só será concedido oficialmente no século XIX, quando interesses históricos e literários permitirem. [21] Segundo o historiador Pedro Calmon, em 1713 o poeta Tomaz Pinto Brandão foi o primeiro a lembrar Gregório de Matos, imitando-lhe o estilo e mais tarde Nuno Marques Pereira, na segunda parte d’O Peregrino da América, cita-o na relação dos poetas da cidade ao lado de Eusébio de Matos. Porém, não o mencionou Rocha Pita na História da América Portuguesa por motivos assumidos pelo historiador do século XVIII: “não lhe perdoaria a rima de mim...”. A narrativa de Calmon deixa claro que, apesar da poesia de Gregório de Matos não ter, no século XVIII, subido “a dignidade dos prelos, caíra no luxo das livrarias, delas saltando para a tradição popular”[22].
             A visão pessimista em relação ao futuro da Cidade da Bahia e a imagem pejorativa que o poeta constrói são antes fruto do desejo de edificação de uma imagem moral da cidade. É presente o desejo do poeta de que, através da crítica, ocorram mudanças, ainda que estas mudanças se dêem no sentido de uma aproximação aos costumes e crenças européias. Não há intenção meramente destrutiva, no sentido de que a Cidade da Bahia não represente nada (em termos de identidade) nem para o poeta, nem para o Brasil, por ver-se dominada pelas leis ou, ao contrário, por não se deixar dominar totalmente pela cultura de Portugal. Ou seja, o próprio posicionamento do poeta em relação à Cidade da Bahia é paradoxal, pois ao criticar as atitudes da população ele, ao mesmo tempo, critica a exploração mercantilista feita por Portugal [23]. Ao mostrar como os vícios aqui se tornam virtudes, comprova a ausência do domínio português no que diz respeito aos aspectos culturais em formação. O que valia como virtude na Europa, nem sempre era possível ser conservado numa terra que os olhos do rei alcançavam apenas através de cartas.
Apesar de ter formação intelectual aos moldes portugueses, Gregório de Matos reconhece a brasilidade, portanto, pelos vícios vistos como virtudes. Considerando que uma não-identidade é também uma forma de identidade, ou seja, o fato de não se identificar totalmente com o “espírito humano” [24] europeu abre a possibilidade de formação de um novo espírito não menos humano que o imposto pelo colonizador e durante muito tempo aceito pelo colonizado. Assim, a formação intelectual e o ativismo político e social de Gregório de Matos o fazem oscilar, num movimento pendular, entre duas identidades e duas culturas: a colonial e a do europeu e, assim, pé lá e pé cá é que ele melhor representa este espírito multicultural que é o ser brasileiro.
No romance Boca do Inferno este movimento pendular se concretiza em atos e palavras, pois o poeta está dividido entre uma figura que observa a cidade através de uma janela e a descreve e outra que é parte desta cidade circulando por seus becos, prostíbulos, palácios e igrejas. Esta duplicidade de Gregório de Matos é refiguração paródica daquela apresentada estilisticamente em sua obra poética e possibilita a construção do personagem em sua complexidade humana, característica do espírito barroco que se instalava no Brasil, adequando-se ao contexto de imposições de valores europeus e à cultura brasileira que se formava.
Na narrativa, as apropriações de trechos dos poemas de Gregório de Matos constituem uma espécie de metonímia, em que não se desconsidera o todo dos textos, mas também não o apresenta. Se na biografia de Pedro Calmon, a qual tomamos como exemplo, os poemas são ilustrativos do estilo e do posicionamento ideológico do poeta, incorporados à narrativa romanesca eles adquirem estatuto pragmático, mundano, tornam-se fala, descrição de espaços, impregnando a narrativa com o estilo do poeta. Os versos de Gregório de Matos são o próprio poeta desfeito em linguagem.
Assim, o nativismo de Gregório de Matos ou o seu sentimento de pertencimento à colônia está, no romance de Ana Miranda, inscrito pela relação ser, espaço e tempo, sendo o espaço cultural territorializado elemento definidor do ser nacional em processo de formação. Apropriações de poemas que descrevem criticamente a Cidade da Bahia revelam este ponto de vista. Deste modo, quando no romance encontramos:

‘Esta cidade acabou-se’, pensou Gregório de Matos, olhando pela janela do sobrado no terreiro de Jesus. ‘Não é mais a Bahia. Antigamente havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos granachas, na frente da forca fazem assaltos à vista’. [25]

O leitor que conhece a obra do poeta se lembrará do poema “A huma cobra qu [sic] se dezia andava no boqueirão de Sancto Antonio do Carmo”. Citamos o poema para que se possa observar diferenças e semelhanças.




Acabouçe esta cidade
senhor, jâ não he Bahya,
jâ não ha temor de Deus,
nem del Rey, nem da Justiça.
Lembrame que ha poucos annos,
inda não hâ muytos dias,
que para qualquer função
de hum crime, prizão se via,
Hião por ese certam
ao centro da Jacobina
prender algum matador
inda que foçe a espadilha.
E hoje dentro na prassa,
nos barbas da Infantaria,
nas boxexas dos granaxas.
com pote, e forca a vista
Que esteja hum surucucû,
com soberanna ouzadia,
feita parca das ydades,
cortando ao pos âs vidas?
Com tantas mortes as costas
que não haja huma rifa,
de paos, que ao tâl matador
lhe ponha o basto em sima
He muyto barbaro rigor
o desta cobra atrevida,
que esteja na estrada publica
fazendo asaltos a vista
Onde estâ Gaspar Soares
que não vay â espora fita
Ainda sujeito a revisão
no lazão lansarlhe a garra,
e mettella na enxovia
Se está no mato emboscada
no seu mocambo metida,
mandemlhe hum terço ligeiro
de Infantes de Henrique Dias.
Se dizem que estâ na peça,
sem lhe fogo â culimbrina,
jâ quye faz peças tam caras
custelhe esta peça a vida.
Vem quatro, ou seis Artelheyros
cavalgarlhe a Artelharia,
por que sendo noyte, dâ
fogo, â toda a couza viva
Tira com ballas heruadas,
A que não hâ medissina
porque a trâs sempre na boca,
com veneno, e sallina.
E o cazo he mostruzidade,
porem não hê maravilha,
que haja cobras, e largartos,
entre tanta sevandija
Sô digo que he boa pessa,
por que na pessa escondida
vêlla na pessa de noyte,
dorme na pessa de dia.



O recorte e as alterações da forma, do conteúdo e do contexto marcam a diferença textual na apropriação, mas a intenção de descrever o estado de decadência da cidade permanece. Na narrativa, os versos sugerem ainda o que está por vir: o assassinato do alcaide. Notamos que o descontentamento do poeta em relação à situação da cidade dá-se devido às mudanças políticas, com as quais ele não concorda. No poema, há o tom de denúncia do matador autorizado pelo poder público que no romance entendemos tratar-se do alcaide-mor. A frase “antigamente havia muito respeito” sintetiza a idéia de que já não há justiça na cidade. Assim como a “surucucu com soberana ousadia” que está “na estrada pública fazendo assaltos a vista”, no romance estão também os encapuzados prontos para a vingança escondidos atrás da igreja. A falta dos detalhes narrados no poema propõe, na narrativa ficcional, um outro sentido ao pensamento de Gregório de Matos, mas sem destituir o sentido dado pelo poema. O que era denúncia de abusos do poder passa a ser também anúncio da desordem geral.
O empréstimo do texto do poeta gera uma alternância de sentidos na medida em que o leitor identifica o poema, mas não encontra o todo significativo. Entre o sentido de denúncia e o de anunciação há uma diferença de amplitude que vai do particular para o geral. Do mesmo modo, o romance não é apenas uma narrativa sobre a vida do poeta e sua literatura, mas também sobre a vida na colônia, sobre a formação da identidade nacional brasileira.
As reflexões sobre a influência do escritor do Barroco espanhol Gongora y Argote parecem marcadas por um sentimento de inveja do seu cultismo. Gregório de Matos que transitou entre os estilos do movimento barroco foi influenciado também por Quevedo, praticante espanhol do traço conceptista. O romance, talvez por enfatizar a face satírica de Gregório, propõe o gongorismo como aspiração inatingível pelo poeta da América colonial. Sua localização, estar no lado escuro do mundo, comendo a parte podre do banquete parece ser motivo suficiente para que não alcançasse o culteranismo do poeta espanhol. A questão proposta ao leitor é: “Teria sido bom para Gregório se tivesse nascido na Espanha? Teria sido diferente?” [27] A pergunta pressupõe o conhecimento do leitor sobre a história biográfica do poeta barroco e, ao mesmo tempo, o lança em direção à narrativa para nela descobrir o motivo da pergunta.
Para aquele que conhece ou tem em mãos a biografia de Gregório poderia considerar a pergunta uma provocação irônica. Ao sair de Coimbra compôs versos hostis à cidade que diziam “Adeus Coimbra inimiga,/ dos mais honrados madrasta,/ que eu vou para outra terra/ onde viva mais à larga. [...]” [28] Mais tarde, diante do infortúnio e da distância relembra “Eu sou conimbriense/ nascido nestas montanhas. [...]” [29]. Assim, poderia o leitor concluir que se Gregório tivesse nascido espanhol, talvez satirizasse ou denunciasse as mazelas da Espanha e dos espanhóis. No entanto, seria ainda grande poeta.
Fica aberta, no romance, a discussão iniciada com a publicação da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, que teve como debatedores – em polêmica bem conhecida, mas que vale ser retomada aqui – Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos.   De acordo com Candido, para que haja de fato literatura é preciso escritores conscientes de seu papel, capazes de consolidarem uma obra que estimule a formação de um público, de modo que com esses três elementos se promova a "continuidade literária" [30]. Ou seja, a não-ruptura das obras com seu público, a fim de que se possa configurar um sistema. Esse "esforço de glorificação dos valores locais" é, segundo Candido, "fruto de condições históricas" [31], de um desejo de desenvolver autonomia e unidade quando o Brasil deixou de ser colônia e se tornou nação. Isso impõe à consciência brasileira a necessidade de construir uma identidade nacional, tornando-a a missão de todo o escritor.
Haroldo Campos, em O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989), coloca-se contrário ao modelo de historiografia presente na obra de Antonio Candido. Campos argumenta que esse modelo "é necessariamente redutor" e que no Romantismo, a "'autenticidade’ e ‘permanência’ são entendidos como valores ‘auráticos’, não-críticos, a-históricos, na medida em que são avaliados por um cânon axiológico absoluto, alçado à condição de verdade atemporal" [32]. O poeta e ensaísta afirma que a exclusão do Barroco por Candido, em seu modelo de formação, privilegia o olhar romântico e assume uma perspectiva crítica anacrônica.
Em sua obra, Conceito de Literatura Brasileira (1981), Afrânio Coutinho também se coloca contrário ao modelo de formação de Candido. Coutinho defende o Barroco como movimento pertencente à literatura brasileira, identificando Gregório de Matos como o primeiro autor dessa literatura pelo seu sentimento nativista. Segundo o autor, "a brasilidade já se vinha constituindo, consolidando e libertando havia muito antes da fase de 1750 a 1836". [33] O autor defende, portanto, que a formação da literatura brasileira iniciou-se com o Barroco. Os argumentos apresentados pelo crítico são de que o descrédito do movimento Barroco pelos portugueses tem motivos políticos e sociais. Pelo fato de o Barroco ter sido um fenômeno originalmente espanhol, a preocupação com a "importação cultural (...) se somava à dominação política" [34], gerando a condenação e a repulsa dessa estética. Portanto, segundo Coutinho, o sentimento do ideal nacional de se libertar do poder de Portugal que existia desde os primeiros tempos, fez com que os brasileiros buscassem modelos fora de Portugal, encontrando no Barroco espanhol uma forma de reagir contra o jugo português. Dessa forma, Coutinho atribui ao Barroco brasileiro uma preocupação nativista.
Silviano Santiago, por outro lado afirma que o compromisso missionário dos pensadores brasileiros (escritores e pensadores de cultura de modo amplo) tem sempre como horizonte de reflexão a oposição entre o local e o universal. O escritor romântico abandona qualquer complexo de inferioridade em relação à Europa (o "lá") deixando de copiá-la, para, então, refletir, apresentar e valorizar as particularidades do Brasil (o "cá") em suas obras. Parece-nos que, ao barroco brasileiro faltou abandonar este complexo de inferioridade, deixar de copiar Gongora, Quevedo e Camões. O romance explora esta questão do sentimento de inferioridade, apresentando a opinião de Gregório sobre seu próprios versos:
As poesias líricas que escrevia lhe pareciam muito abaixo das de Gongora y Argote. E inúteis. Nas duas mil casas da Bahia, as pessoas estavam mais preocupadas com a concupiscência e a avidez pecuniária do que com o espírito.[35]

E para encerrar a discussão com o rabino sobre a publicação de seus textos poéticos Gregório de Matos diz: “Estou apenas sendo justo, senhores filósofos, faço versos para os que não sabem ler” [36]. Quase sempre o que justifica o caráter profano, inferior das composições aos olhos do poeta é o meio em que vive. A narrativa, portanto privilegia esta visão do ser marcado pelo território cultural em que vive (a colônia) e não pelo espaço no qual se formou (Portugal). É o narrador quem anuncia a incorporação da cidade por Gregório de Matos:

Ninguém conseguiria mudar a natureza de Gregório de Matos. Não havia mais nenhuma mulher em Portugal para ser fornicada. Tampouco tinha o poeta mais nada a aprender por lá. Estava sendo devorado por um monstro que não via, estava numa cidade decomposta, sediado entre seu espírito fecundo e sua alma mordaz. Poderia ter-se dedicado à lírica ou à transcendência espiritual, como Vieira, mas abdicara da graça da manhã ensolarada e dos mistérios suaves, deixava-se vagar pela esfera mais funda e por isso o chamavam Boca do Inferno. Mas boca do inferno não era ele. Era a cidade. Era a colônia. [37]


O mesmo narrador apresenta no Epílogo do romance o destino das personagens que o mesmo se dá em relação à cidade que “haveria de ser sempre um cenário de prazer e pecado [...]. Não deixaria de ser, nunca, a cidade onde viveu o Boca do Inferno” [38].
O fato de o Brasil não estar constituído como Estado-nação está implícito no questionamento proposto pelo narrador no início do romance e certamente influenciaria a produção literária de Gregório de Matos, pois tratar-se-ia de um outro contexto histórico. Observamos que as apropriações de poemas e fragmentos biográficos contribuem para a construção de um discurso voltado para o caráter nativista do poeta barroco. A cidade, a população da colônia, sua situação política e econômica adquirem forma e expressão através dos fragmentos de textos que se deslocam dos registros históricos para a narrativa romanesca. É esta transconstextualização de gênero, estilo e convenções a que chamamos de paródia. O traço irônico desta paródia surge no trânsito entre os textos apropriados e o modo como são apresentados no romance, no plano semântico que se institui pela justaposição de discursos.
Como pudemos ver na apropriação do poema acima, enquanto a leitura integral do texto leva o leitor a construir uma idéia sobre a decadência da Cidade da Bahia do século XVII; no romance, alguns versos deste poema são apresentados como introdução à narração do assassinato do alcaide-mor, do qual o poeta é cúmplice. Os versos emprestados vêm sugerir tanto uma explicação contextual para a ocorrência do crime – a desordem geral – quanto a reiteração da crítica antes feita por Gregório de Matos. Assim, o poema que tem o mote, anteriormente citado, “A huma cobra qu [sic] se dezia andava no boqueirão de Sancto Antonio do Carmo” introduz o olhar e o posicionamento do narrador que filtra os textos de Gregório e de seus biógrafos. Poderíamos pensar aqui na construção do romance como um palimpsesto de leituras. Quanto mais aprofundamos a leitura, encontramos resquícios, sinais de outros textos ou outras interpretações sobre a condição do poeta, de seu espaço social e de seu tempo.
Encontramos no romance descrições do espaço que vão da objetividade fotográfica à subjetividade poética. Estas descrições ambientam a narrativa tanto quanto interferem no caráter das personagens e, assim como Gregório de Matos, toda a população encontra-se corrompida pelo caráter paradisíaco e ao mesmo tempo demoníaco da cidade e pelo conflito cultural, político e econômico com a pátria-mãe, modelo de civilização. Lembramos aqui de Homi Bhabha que afirma que uma nação só se constitui pela necessidade de marcar diferenças em relação a um outro. Ou seja, só faz sentido caracterizar ou definir uma identidade nacional brasileira porque há uma necessidade de afirmação e de diferenciação  em relação à nação americana, inglesa, francesa, etc. Assim, a ausência de uma unidade cultural e política autônoma, na colônia, poderia justificar o caos administrativo, mas parece que, no romance, esta ausência de um discurso de nação assinala também uma diferença em relação ao outro. Reclama-se a dependência política e a usurpação econômica exercida pela nação portuguesa que, pela distância, não consegue atuar administrativamente. A voz de Antônio Vieira que acusa:

‘Nos Brasis, nas Angolas, nas Goas’, continuou o jesuíta, ‘nas Malacas, nos Macaus, onde o príncipe só conhece por fama e se obedece só por nome, aí são necessários os criados de maior fé e os talentos de maior virtude. Dize isso a Sua Alteza, Gonçalo. Se em Lisboa, onde os olhos de príncipe vêem e os brados do príncipe se ouvem, faltam à sua obrigação homens de grandes obrigações, que será in regionem longinquam? O que será, nas regiões remotíssimas, onde o príncipe, onde as leis, onde a justiça, onde a verdade, onde a razão, e até mesmo Deus, parecem estar longe?’ [39]

O encontro de Gregório de Matos com o rabino Samuel da Fonseca motiva o narrador a dar notícias da realidade nos engenhos e, tratando da economia açucareira, afirma que “além de enfrentar as inclemências da natureza e as dificuldades inerentes à produção, os senhores da cana estavam sujeitos a uma política desastrada da coroa” [40]. Mais adiante, o narrador explica que os produtores pagavam ainda as despesas da guerra contra Holanda, “mas a colônia andava atrelada a Portugal. As moedas e riquezas não ficavam no Brasil. A economia marchava conforme as circunstâncias viessem a atender as necessidades do regime fazendário da metrópole”. Por aí vemos o quanto custava à colônia a dependência administrativa de Portugal, por isso a irritação de Gregório de Matos que sentencia: “Os brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal” [41].

Que me quer o Brasil, que me persegue?
..........................................................................
Com seu ódio a canalha, que consegue?
que aqui honram os mofinos
e mofam dos liberais

Que os Brasileiros são bestas,
e estarão a trabalhar
toda a vida por manter
maganos de Portugal.
[42]

A voz do poeta a recitar apenas uma parte do poema, conclui o raciocínio do narrador, mas deixa um espaço para que lembremos da perseguição por que estava passando e era motivo da visita ao rabino. Assim, a duplicidade significativa dos versos emprestados pelo romance nos leva a pensar sobre a relação entre Brasil e Portugal, bem como sobre a relação entre o poeta a colônia e a metrópole.
O espaço do romance incorpora aspectos culturais e morais impostos pelo colonizador, mas sem abandonar totalmente as características de origem. Há, com isso, uma espécie de unificação ou congruência entre ser e espaço, os quais são marcados ideologicamente pelo tempo histórico narrado. A cidade e Gregório de Matos são figuras máximas incorporadoras do espírito da época. A primeira por sediar tanto eventos históricos quanto a vida do poeta e a segunda por representar o sentimento do mundo barroco no Brasil. O que desencadeia esta representação no romance é o assassinato do alcaide Francisco Telles, fato que assinala o recorte que se faz sobre a vida do poeta e sobre a história do Brasil, para apresentar e desenvolver questionamentos e reflexões a respeito das imposições moralizantes dos colonizadores sobre os colonizados, do caráter canônico da história e da crítica literária.
Nesta arena em que a Cidade da Bahia se transforma constroem-se dois centros: a personagem Gregório de Matos, de caráter múltiplo (histórico e literário; advogado e político; poeta e assassino) e o assassinato que, representando a guerra pelo poder, é um divisor de águas no romance: de um lado está a aristocracia colonial, com o apoio da Igreja, e do outro está o poder colonizador. Há um jogo entre representantes da terra e representantes da coroa. Sobre todas as dualidades paira a ficcionalidade questionadora que propõe um discurso que não é nem o discurso canonizado pela história nem um discurso totalmente novo ou inventado. O discurso do romance propõe a idéia de que entrar na história pela Cidade da Bahia do final do século XVII, ou pela vida de Gregório de Matos, significa entrar num período de formação da identidade cultural brasileira pela boca do inferno num duplo sentido: a) o de que se inicia uma caminhada por um mundo de maldades e desordens e b) o de que o inferno é um mundo multiforme de contradições presente em toda a complexidade humana de Gregório de Matos.
A cidade da Bahia, enquanto microcosmo do Brasil colônia, é refigurada por Ana Miranda tal como a descrevem os documentos históricos e os poemas de Gregório de Matos, é síntese significativa destes textos e contribuem para a refiguração do poeta. Entre os textos parodiados e o texto paródico há uma mudança da visão panorâmica (da época, do estilo barroco, do espaço social e político da vida do poeta) para uma visão fragmentária.
             Parece haver, no romance, um espírito de época se manifestando em toda a colônia, lugar de confronto entre dois centros de poder: o que se forma na colônia e o do colonizador que tenta expandir seus domínios. No poeta, visto por sua obra, esta oposição não resulta nem da supremacia do padrão da metrópole, nem do americano, há nele uma coexistência ambígua de duas culturas, duas tradições, dois centros, fazendo Gregório de Matos oscilar de um centro a outro sem definir-se. [43] O espírito de época presente na poesia de Gregório de Matos está lá não apenas porque ele vivia no século XVII, mas também porque ele observava, conhecia, atuava e, mais importante, porque ele registrou-se, através da linguagem poética, como homem do seu tempo influenciado e modificado pelo contexto social e histórico.
Há, na obra do poeta Gregório de Matos, dois centros, que se apresentam através do confronto entre duas figuras antagônicas refletidas na sua formação epistemológica e biográfica. Por um lado, está o poeta em sua formação histórica a partir de um colonialismo português (econômico, jesuítico...) e por outro a realização desta formação, enquanto experiência, na colônia – terra que se apresenta como a inversão da Europa.
A apresentação de Gregório de Matos no romance demonstra uma preocupação em dar a ele complexidade humana através de seu lugar no mundo barroco, de sua representação como figura histórica e política, através de suas descrições como indivíduo social e como artista. Esta complexidade humana, busca de romancistas e biógrafos, dá ao poeta um caráter paradoxal que é próprio do ser barroco. Portanto, Gregório de Matos é o Boca do Inferno não apenas pelas palavras que profere, mas pelo ser barroco (brasileiro e português) que representa. É uma entrada para desvendar esta complexidade identitária que é o ser brasileiro e é esta a busca maior presente no romance enquanto representação histórica. 
Para que esta caracterização se dê coerentemente, dois aspectos da estética barroca estão fortemente apresentadas no romance: o Cultismo e o Conceptismo. Estas características estão entrelaçadas à forma e ao conteúdo da obra de modo a garantir o seu teor histórico-crítico-literário-biográfico. Assim como para os artistas representantes da estética e do comportamento barroco o romance transmite a sensação inquietadora de que em tudo habita uma natureza dúplice. O que era apresentado pelo uso de antíteses, onde cada afirmação implicava o contrário dela mesma, o paradoxal está no romance através da personificação de Gregório de Matos. Ele é o ser que guarda o avesso daquilo que mostra e o mundo de Gregório de Matos é o resultado de um jogo feito diante do espelho.
No romance Boca do Inferno, há uma preocupação com a identidade brasileira em suas origens, enquanto que no período da estética barroca o que se pretendia era compreender o presente através da realidade presente, numa tentativa de encontrar o ser brasileiro que emergia naquele entre-lugar cultural. Talvez despontasse em alguns artistas da época a consciência da formação cultural multíplice e o desejo de independência cultural e, assim sendo, estariam dando início a um sentimento de nacionalismo, de brasilidade que os punha contra as imposições culturais européias e ao mesmo tempo não se sentiam capazes de desligar-se totalmente delas.
Está presente no romance o paradoxo barroco, uma incessante disputa entre o ser e o parecer: “A cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoarem o Inferno” [44]. É importante observar, neste trecho, que os termos antitéticos Paraíso e Inferno aparecem com inicial maiúscula, destacando a relevância dos termos na construção frasal enquanto elementos enunciativos de um discurso que permanece e se desenvolve no percurso histórico do romance e que se prende mais ao caráter moral da cidade do que a aspectos cenográficos.
O que Ana Miranda faz, no romance, é transpor este caráter polêmico e controverso de Gregório de Matos para toda uma estrutura de época, tornando possível propor questionamentos sobre campos diversos – histórico, literário, político, econômico, social. Assim, questionar esse tempo através da figura de Gregório significa rearticular um discurso fundador de uma identidade, a partir de uma personagem também fundadora e de dentro deste discurso problematizar e questionar a constituição do ser e da cultura brasileira. Por meio destes questionamentos, talvez possamos nos atrever a formular uma resposta para a pergunta: por que Gregório de Matos tornou-se cânone? 
A formação intelectual de Gregório de Matos está na metrópole, mas a aplicação, o experimento deste discurso ocorre no Brasil, onde a cultura européia domina pela força, mas não deixa de ser contaminada. E é nesta rua de mão dupla que Gregório de Matos caminha e é nela que a formação da identidade do brasileiro emerge no romance Boca do Inferno. Ao discutir sobre a poesia de Gongora, Quevedo e Lope de Vega com Gonçalo Ravasco, Gregório de Matos ouve do amigo: “Português? És um poeta brasileiro e aqui tudo é diferente.” Afirmação com a qual o narrador concorda e explica:

Sem dúvida o fato de ser um poeta brasileiro fazia com que Gregório de Matos se sentisse um idiota. Vivia afastado da metrópole e perdia-se em divagações bastante confusas sobre si mesmo. Achava que nada mais tinha a perder depois que voltara para sua terra, viúvo e solitário. [45]

Apesar disso, o que importa é a condição colonial em que está inserido, seria um anacronismo afirmar que “brasileiro”, na fala de Gonçalo Ravasco, tenha conotação nacionalista.
A atualização do discurso nativista, presente na obra de Gregório de Matos, pelo romance, ocorre quando a noção de centro deixa de funcionar, no e para a narrativa, como uma realidade fixa e imutável que serve de pivô entre opostos binários onde sempre um dos lados é privilegiado: branco/negro, homem/mulher, eu/outro, ocidente/oriente, colonizador/colonizado, e passa a ser considerado como uma elaboração, uma ficção, em que o “ou-ou” dá lugar ao “e-também” da multiplicidade e da diferença. O romance Boca do Inferno privilegia esta multiplicidade quando, ao narrar a vida de Gregório de Matos, o faz considerando não apenas seu caráter artístico, mas também sua atividade social, política, religiosa e individual; dando a ele não a perspectiva do cânone literário, mas a do indivíduo que se posiciona ativamente contra a situação política e cultural da colônia e que, por isso, é posto à margem do sistema, tornando-se um poeta andarilho que canta o desconserto do mundo colonial. Deste modo, o nativismo de Gregório de Matos, tal como o discute Afrânio Coutinho, está no romance como traço ideológico em questionamento. Cada fragmento de texto apropriado diz tanto sobre o contexto social e político da cidade quanto sobre os interesses individuais do poeta.

3.1.2  A última Quimera: a nação em trânsito

A análise do romance Boca do Inferno acima demonstra que a condição colonial brasileira é apresentada através da descrição do espaço social, cultural, político e econômico no qual vivia o poeta Gregório de Matos. Incorporador desta condição inscrita na Cidade da Bahia, o poeta declara no romance, bem como em sua poesia: “A ti tocou-te a maquina mercante que em tua larga barra tem entrado; a mim foi-me trocando e tem trocado tanto negócio, e tanto negociante” [46].
Esta relação do protagonista com o espaço social se dá de modo diverso em A última quimera. Neste o tempo e o contexto histórico da narrativa já não comportam o mesmo ideal. O Brasil de Augusto do Anjos busca impor-se no contexto mundial como Estado-nação. Os antigos interesses de afirmação da condição nacional precisam ser reformulados e caminham para um processo de reafirmação ou de confirmação da autonomia e legitimidade do Estado-nação brasileiro. A dependência administrativa e cultural em relação à Portugal fazia vigorar, no Brasil colonial, um discurso oscilante entre a manutenção do regime e a sua crítica, porém sem pensar ainda na independência instituída quase dois séculos depois.
É interessante notar que os recortes temporais feitos por Ana Miranda para a construção narrativa dos romances fazem coincidir momentos decisivos da história social brasileira e da biografia dos poetas refigurados. Representantes da história literária brasileira, estes poetas são propostos nos romances como protagonistas e testemunhas da história social do país. Em A última quimera, Augusto dos Anjos não é comparado, nem definido pelo meio em que vive. O espaço social é diversificado, múltiplo, enquanto o poeta sofre para adaptar-se a esta diversidade. A Paraíba, o Rio de Janeiro e Leopoldina tem características próprias que o poeta vai desvelando, embora não se encaixe em nenhuma delas. Elas representam um percurso, pegadas que sinalizam os infortúnios de Augusto dos Anjos e sua visão de mundo.
Assim, o Engenho do Pau D’arco, na Paraíba, onde passou a infância, é o espaço em que se configuram lembranças da formação pessoal e intelectual do poeta; o Rio de Janeiro, sereia falaciosa, representa as grandes dificuldades financeiras, a desintegração do sonho; e Leopoldina, a cidade calma onde finalmente o poeta encontra sossego financeiro ainda que não proporcione perspectivas de futuro literário. A realização do sonho, da quimera, não ocorre em nenhum espaço existencial, a vida e a obra de Augusto dos Anjos se completam em sua cosmogonia. Os espaços físicos da narrativa simbolizam, por outro lado, o país em agonia, sofrendo com as diferenças políticas e sociais internas diante de um processo de integração nacional e mundial.
No contexto histórico e social narrado nos romance Boca do Inferno e Dias e Dias as relações entre Brasil e Portugal são de grande importância para a configuração do status quo da formação do Estado-nação brasileiro. O Brasil colonial de Gregório assim como o Brasil independente de Gonçalves Dias tinham a nação portuguesa ou européia como referência no sentido de inscrever nela ou a partir dela uma identidade, um senso de comunidade. No novecentos, as exigências impostas pela sociedade industrial que provoca um fluxo migratório mundial, serão outras. É preciso que o olhar nacional volte-se para a sua organização interior e proponha mudanças que levem, a partir do auto-reconhecimento, à integração no contexto mundial. Construir um romance sobre Augusto dos Anjos significa refigurar o seu tempo-espaço. O recorte temporal feito sobre a vida do poeta, no entanto, indica a preocupação da autora em destituí-lo de seu aspecto canônico para investir nele as agruras do tempo.
Se no Boca do Inferno o narrador apropria-se dos versos do poeta, buscando neles as várias faces de Gregório de Matos e, principalmente, um perfil político e social da colônia, no A última quimera são apropriadas as correspondências de Augusto trocadas com dona Córdula, sua mãe. As cartas, tal como nos mostra Raimundo Magalhães Júnior na obra Poesia e vida de Augusto dos Anjos (1977), são documentos que registram a preocupação do poeta em relação aos acontecimentos políticos e literários de seu tempo. Ana Miranda constrói a narrativa do romance tendo estas cartas como fonte (além de outros textos históricos) e apropria-se de alguns trechos em que o poeta, enquanto intelectual que luta por um espaço na sociedade literária, tece comentários e opiniões sobre personagens e fatos da história do Brasil que testemunha.
O que pretendemos, neste momento, é reconhecer o potencial crítico destas apropriações de fragmentos textuais que tratam de assuntos nacionais. Estes fragmentos nem sempre são apresentados tal como são encontrados nas cartas e, por vezes, basta-lhes a transcontextualização para modificar-lhes o sentido ou mesmo a intenção primeira expressa nas cartas. Repetição com diferença crítica, justaposição de idéias é o que nos parece ocorrer em alguns momentos da construção narrativa.
A caracterização das cidades por onde passou Augusto surge em vários momentos da narrativa. Fragmentos de uma mesma carta estão espalhados a fim de dar ao leitor uma idéia da visão do poeta a respeito destes espaços sociais tão diversos e que proporcionam diferentes experiências e inspirações poéticas. Em carta enviada a D. Córdula aos 29 de maio de 1911, por exemplo, Augusto demonstra depois de poucos meses estando no Rio de Janeiro, sua decepção com a cidade que era então capital do país.
O ano de 1910, quando Augusto dos Anjos muda-se para o Rio, é marcado pela disputa eleitoral entre o Marechal Hermes R da Fonseca e Rui Barbosa pela sucessão presidencial. Ano de decisão também para Augusto, pois o agravamento da crise econômica obrigara a família a desfazer-se do Engenho do Pau D’arco, cenário de sua infância e juventude presente em suas composições poéticas. Nesse mesmo ano, casa-se com Esther Fialho e ocorre o incidente com o presidente da província, João Machado, tomando a decisão de pedir demissão e partir para o Rio de Janeiro. Três meses depois, continuava desempregado na capital nacional. A notícia do primeiro emprego no Rio é dada a 29 de abril de 1911 e na carta à mãe do dia 29 de maio desabafa ao falar sobre o irmão Aprígio dos Anjos que também se mudara para a capital:

Desenvolveu ele alguns esforços, no intuito de arranjar qualquer emprego nesta capital – espécie de sereia falaciosa – pródiga unicamente em sonoridades traidoras para os que vêm aqui pela primeira vez [...] Era meu desejo que Aprígio não saísse agora do Rio de Janeiro. Todavia, em se tratando de lutar pela vida, nesse século de danação social, em que o dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas, é muito de louvar o procedimento do Aprígio, saindo dessa Paraíba Madrasta, enxotadora de seus filhos, em busca de outra atmosfera mais propícia a florescer libérrimo de suas ricas aptidões de moço. [...]. [47]

No romance estas críticas aparecem em momentos e contextos diversos, unidas a outras críticas feitas pelo poeta em outras cartas, artigos publicados em jornal. O narrador, antes de apresentar, entre aspas, um trecho da carta, descreve os motivos da decepção do poeta.
Uma cidade cosmopolita, mas que até então lhe parecia uma aldeia – embora houvesse muitos franceses e ingleses – repleta de injustiças sociais, um espetáculo de miseráveis ao lado de caleças, automóveis, que tornavam as ruas tristes corredores. ‘O Rio de Janeiro é uma espécie de sereia falaciosa, pródiga unicamente em sonoridades traidoras para os que vêm pela primeira vez’. [48]

A narrativa une ao enunciado da carta uma idéia comum à cultura brasileira, pois compara o Rio a uma “aldeia”, sugerindo a ausência de civilização e ressalva a presença de alguns franceses e ingleses, como presença da civilização. O que o romance faz, nos parece, é configurar no discurso do narrador e, por extensão, no de Augusto dos Anjos, o pensamento típico de uma época em que muito se valoriza o elemento europeu, que ainda constitui um modelo de civilização. A modernidade brasileira se prepara ainda para as discussões e mudanças no plano social, cultural e político.
É neste ambiente de mudanças que amadurecem os ideais que farão parte de um projeto artístico que será discutido a partir de 1922. Um projeto que valorize e proponha a redefinição da identidade nacional, reconhecendo que os moldes do nacionalismo romântico já não se enquadram no contexto social e histórico brasileiro do novecentos. No A última quimera, esta ambientação é essencial em dois sentidos: o da relação entre o ser (o poeta) e seu contexto histórico e social, que determinam a sua trajetória pessoal; e o da inscrição deste ser como peça chave para se pensar este momento de transição histórica e literária. Na citação acima, temos a voz do poeta endossando este clima paradoxal na capital nacional As ruas invadidas pelo automóvel, símbolo da modernidade industrial, vistas como “tristes corredores”, tem como imagem oposta a presença dos miseráveis e a intelectualidade tacanha descrita, mais uma vez, pela voz do poeta:

Disse (Augusto) que o Rio era uma cidade que premiava as falcatruas. Os honestos, os sonhadores, eram considerados bestas idiotas. Dentre os poetas grassava o convencionalismo imbecil de Aníbal Tavares, Teófilo Pacheco, a camarilha inteligente, competindo em bovarismos com letrados de Buenos Aires e Paris. Os intelectuais só se preocupavam com futilidades, como a estátua a Eça de Queiroz. Gente como Coelho Neto, João do Rio, grandes homens da literatura, encjhiam páginas e páginas das folhas com o ‘assunto tão palpitante’. [49]

É Francisco de Assis Barbosa, em notas biográficas publicadas no Eu e outra poesias (1983), quem assinala o fato:

A literatura oficial não poderia receber o Eu sem restrições. Jamais consagraria Augusto dos Anjos. Os grandes das letras continuariam a ignorar o poeta e seu livro. Em junho de 1912, o que realmente empolgava as rodas literárias era a idéia de Medeiros e Albuquerque para que se levantasse no Rio de Janeiro uma estátua a Eça de Queiroz, obra do escultor Pinto do Couto, que certamente não agradaria o criador d’O primo Basílio. Entrevista de Coelho Neto, Bilac, Alberto de Oliveira, Paulo Barreto, Felinto d’Almeida e Felix Pacheco enchiam colunas de jornais a respeito de assunto tão palpitante. [50]

A paródia do texto de Assis Barbosa pode ser verificada pelas alterações dos nomes dos poetas na narrativa do romance, indicando esquecimento, talvez proposital, dos mesmos. Quanto ao assunto da propriedade de uma estátua como homenagem a um escritor, o narrador parece tomar posição oposta à de Augusto dos Anjos que, segundo o mesmo, considera “uma tolice”. No último parágrafo do subcapítulo acaba por demonstrar simpatia ao caráter nostálgico e encantador da presença das estátuas em lugares públicos dizendo: “fico admirando a estátua de José de Alencar muito triste em sua cadeira de bronze; sinto vontade de acariciar suas mãos”. [51] A estátua de José de Alencar, escritor romântico brasileiro é aceita pelo narrador, mas não a de Eça de Queiroz, ficcionista do Realismo português. Dois pontos de vista sobre o assunto são apresentados sem que deles se proponha uma conclusão. O tema permanece aberto para o leitor como a convidá-lo a refletir. Constitui-se nisso o traço irônico da construção paródica. O sentido do texto de Assis Barbosa é desdobrado, aberto, multiplicado, embora não destitua o sentido primeiro. O leitor, ao transitar entre os textos e seus significados reconhece a paródia e faz a ironia acontecer.
A desilusão com o Rio de Janeiro, apresentada no romance, pelas dificuldades para publicar o Eu, se estende ao ambiente literário e social da capital brasileira. Mas o “assunto tão palpitante” da estátua, citado por Assis Barbosa, dá-se após a publicação. A cronologia factual não é primordial à construção deste romance atravessado pela memória do narrador e, portanto, as apropriações textuais são, não raro, deslocadas espacial e temporalmente. Ou seja, das cartas para o romance; do documento para a ficção; de um registro marcado pela exatidão temporal, para uma narrativa trançada pela memória e pela história.
A caracterização da Paraíba, no romance, como “Madrasta monstruosa enxotadora de seus filhos” virá como introdução à narração da partida de Augusto em direção ao Rio de Janeiro e do motivo que o fez tomar tal decisão.

Sua partida da Paraíba – ‘madrasta monstruosa enxotadora de seus filhos’ – (...) foi após o desentendimento e sua enérgica reação contra a diatribe do Joque, presidente da província, admirador de Augusto e que, no entanto, agiu como se fosse seu inimigo. O fato foi quase uma tolice, uma dessas pequenas coisas que mudam enormemente o destino de uma pessoa. Mas para Augusto representava muito. [52]

O motivo pessoal de Augusto dos Anjos alia-se, no mesmo capítulo do romance, a outro de caráter social: a fuga do clima provinciano para o lugar onde tudo acontece – a capital nacional. Segundo o narrador, “os jovens deixavam sua província, aos magotes, rumo à gloria cosmopolita” [53]. Vemos, assim, que os espaços onde viveu o poeta Augusto dos Anjos foram importantes para a caracterização do contexto social brasileiro da época, e as características próprias da administração política destes espaços tão diversos são o que constituem a formação individual do poeta e, ao mesmo tempo, representam o Estado-nação. Referindo-se à diferença entre a Paraíba e o Rio de Janeiro narra-se que “a violenta política local não nos satisfazia, queríamos estar próximos da descontraída cidade onde tudo se decidia”. [54] Leopoldina, “uma cidadezinha aprazível, num vale, cercada de distantes montanhas verdejantes” [55], era o oposto do Rio de Janeiro. Para viver nela, segundo o narrador,
a pessoa precisa ter um caráter especial para morar num lugar como este. Primeiro, não pode gostar da solidão, a solidão é algo que só encontramos nos desertos, nas cavernas, nas grandes cidades; depois não pode gostar de sonhar, pois se sonhar acaba indo embora daqui. [56]

Em outro momento, acrescenta que em Leopoldina “todos os moradores têm algo em comum, talvez movimentos mais lentos, ou uma concentração no espírito; são uma gente contida, ingênua, eivada de pureza e paciência” [57]. Distante da agitação política e da intelectualidade carioca, em Leopoldina, o poeta alcança maior respeito e reconhecimento. Diante da morte de Augusto, diz o padre da cidade ao narrador:

Sabe, meu filho, esta cidade está de luto, há um grande pranto em Leopoldina, como se lhe tivessem saqueado toda prata e ouro e os vasos preciosos e os tesouros escondidos. Os príncipes e os anciãos gemem, as virgens e os jovens perderam as forças, a formosura das mulheres desapareceu, como no luto de Israel no primeiro livro dos Macabeus. Os homens se entregam ao pranto e as mulheres, assentadas sobre seu leito, derramam lágrimas. Estamos perplexos. Aqui, todos nos sentimos culpados pela morte do poeta. [58]

As descrições das cidades, como espaços sociais individualizados, constituem fases da vida de Augusto dos Anjos. Em conjunto estes espaços dão o clima nacional do país, no início do século XX. Pinçando alguns fatos da vida do poeta e do país, o foco temporal está sobre os anos de 1910 e 1914. Refigura-se, assim, momentos decisivos da biografia do poeta do hediondo e de seu país.
A disputa política entre o marechal Hermes e Rui Barbosa é assunto das cartas escritas por Augusto dos Anjos, durante o período em que morou no Rio de Janeiro. Adepto ao “civilismo” de Rui Barbosa, no entanto sem maiores interesses para com a política, Augusto permanece à mercê dos acontecimentos e sem emprego, já que dependia de indicação política para tal. O alvoroço da cidade parece interessar ao poeta que demonstra nas cartas ter conhecimento e posicionamento crítico sobre os fatos. Este clima, no entanto, é estendido ao país e ao mundo. A visão local e individual expressa pelas cartas é ampliada pelo narrador que representa uma voz à distância do ocorrido. Antes de relatar sobre a revolta da chibata, ocorrida em novembro de 1910, o narrador, usando o texto de Augusto diz:
A cidade – até posso dizer, o país, o mundo – estava em permanente conflito. As coisas se sucediam atropeladamente. Logo que chegaram ao Rio de Janeiro, Augusto e Esther assistiram pela janela do sobrado à sublevação da marinhagem, podiam ver os couraçados parados no mar [...]. [59]

Enquanto que, na carta, Augusto faz o seguinte comentário:

Esta cidade caminha no mesmo alvoroço do costume. Os acontecimentos se sucedem uns aos outros, atropeladamente, escapando-se muita vez, em virtude da superabundância, ao cálamo profissional dos cronistas. [60]

Nesta correspondência, o poeta narra a questão do desembarque dos frades expulsos de Portugal e que o governo de Nilo Peçanha não queria deixar desembarcar. O governante republicano foi traído pelo Supremo Tribunal Federal, que autorizou o desembarque. O fato é de alcance histórico menor e, talvez por isso, é substituído pela Revolta da Chibata, no romance. Além disso, a visão do país como espaço de conflitos permanentes não estava na carta de Augusto, é uma atualização de seu discurso. Uma ampliação que se torna possível pelo afastamento temporal daquele que narra se apropriando do discurso do outro. Citamos abaixo o fragmento apropriado e sua reescrita na narrativa do romance:

Escrevo-lhe hoje logo após a sublevação de nossa marinhagem, cujos dread-noughts – verdadeira máquina de destruição radical – estiveram, durante longo tempo assestados sobre todos os pontos desta cidade ameaçando bombardeá-la a cada instante!/ Imagine Vm.ce o terror imensurável que apertou a alma pacífica da população, gerando-lhe, na excitabilidade anormal da vida nervosa, a mais desoladora de todas as expectativas. [61]

Texto paródico:

Os canhões dos dreadnoughts, verdadeiras máquinas de destruição, durante a revolta ficaram assestados sobre diversos pontos da cidade, como o Catete, o Senado, o Arsenal da Marinha, para a qualquer momento bombardeá-la, criando entre a população um terror que ‘apertou a alma pacífica da população, gerando-lhe, na excitabilidade anormal da vida nervosa, a mais desoladora de todas as expectativas’. Como disse Augusto. [62]

Assim em paralelo podemos observar que todo o fragmento do romance é apropriação do texto do poeta, ainda que apresente diferenças. Além do deslocamento de um gênero discursivo a outro, há diferenças significativas no plano dos sentidos. Primeiro, há atualização da grafia do nome dado aos navios adquiridos pelo Brasil como “estratégia sul-americana do Barão do Rio Branco de intimidar a Argentina com a força naval brasileira na disputa pela hegemonia do Atlântico-sul” [63]; segundo, a definição dos navios dada por Augusto como “máquinas de destruição” é reduzida aos canhões destes navios; terceiro, sinaliza os três pontos onde os navios tomaram posição – dado histórico e geográfico direcionado ao leitor que possui informação suficiente para ter uma noção da estratégia de guerra implementada pelos revoltosos; por último, o narrador que vinha já se utilizando do texto da carta decide, enfim, usar aspas para dar voz a Augusto dos Anjos, destacando a capacidade verborrágica do poeta para descrever os sentimentos da população que, como o poeta, esteve do lado de dentro da situação.
De outro modo, o romance explora ainda a participação do poeta parnasiano Olavo Bilac numa revolução durante o governo militar do Marechal Floriano Peixoto, que resulta na prisão de vários intelectuais adeptos do Marechal Deodoro da Fonseca. Relatar a atuação e a prisão de Bilac, no romance, nos parece uma forma de diferenciá-lo de Augusto dos Anjos não apenas no plano da produção poética e sua representatividade no meio acadêmico e jornalístico, mas também no plano da atuação política. O episódio da Revolta da Chibata mostra Augusto dos Anjos como cidadão comum que sofre com as decisões políticas do país sem tomar parte ou reagir contra estas decisões. Ao contrário de Olavo Bilac, o “morcego tísico” representa o lado pacífico do povo brasileiro. Entre os poetas estabelece-se o dualismo, não mais o dualismo opositor do bem contra o mau, apresentado nos romances históricos tradicionais – mas um dualismo em que convivem o verbalismo crítico de Augusto e o materialismo atuante de Bilac. Esta dupla refiguração do caráter nacional brasileiro pode ser identificada pelas seguintes descrições dos poetas:

Não se pode dizer nem mesmo que houvesse contra augusto alguma restrição quanto a suas crenças políticas, ele era partidário do civilismo e não escondia de seus amigos que votava contra a interferência dos militares na política, mas isso não significava que fosse perigoso ou incômodo para alguém. [64] 

Enquanto que sobre Bilac, após narrar a sua prisão e libertação em 1881, utiliza-se certo humor às custa do próprio poeta parnasiano que ironiza a situação dizendo que “tinha se metido na revolução apenas por um impulso de curiosidade, vontade de conhecer por dentro um movimento político, uma conduta platônica, por vocação para mártir” [65]. O narrador mostra, assim, o caráter político atuante de Bilac que, ainda que tivesse que usar de pseudônimos no jornal O combate

destilou urtiga, fel, galhofas, remoques, cascalhadas, vinhetas revolucionárias, achincalhando os burgueses enriquecidos à custa dos negros, perseguindo um médico que esterilizava mulheres pobres e fazendo outras campanhas do gênero. [66]

Vemos, portanto, que a narrativa faz contrastar o positivismo do poeta de “A pátria” com o pessimismo pacifista do poeta do Eu; faces da mesma moeda corrente brasileira.
Voltando ao assunto da Revolta da Chibata, apontamos ainda o posicionamento pessoal de Augusto como favorável à sublevação. Este posicionamento declarado abertamente na carta escrita dois dias depois do ocorrido, está apenas parcialmente relatado no romance. O narrador prefere que o leitor apenas infira do texto a posição do poeta. Vejamos na carta como está anunciada a posição:

Entretanto as causas geratrizes da sublevação foram, consoante o meu entender, as mais justas possíveis./ Os marinheiros revoltosos desejavam a abolição dos castigos corporais que degradam a personalidade, reduzindo-a a uma trama biológica passiva, equiparável à das bestas acorrentadas.[67]

E no romance:

Os marinheiros queriam que fossem abolidos os castigos corporais – chibata e outros – que ‘degradam a personalidade reduzindo-a a uma trama biológica passiva, equiparável a bestas acorrentadas.[68]

Entendemos, portanto, que o caráter paródico destas apropriações se dá no sentido de que a intenção particular, pessoal de Augusto do Anjos de informar a mãe sobre os trágicos acontecimentos, testemunhados por ele na capital brasileira, é transferida para um plano discursivo mais amplo, com intenção informativa e reflexiva sobre o caráter pacífico do ser brasileiro. No romance A última quimera, uma visão particular sobre acontecimentos históricos no Brasil do início do século XX passa a ter valor histórico. O pessoal torna-se geral, na medida em que Augusto dos Anjos é expressão do homem brasileiro que vive um período de transição para o processo de reconstrução da identidade nacional.
 A última quimera, além do recorte biográfico é uma leitura do caminho para a eclosão da modernidade. Nele está o negativismo de Augusto dos Anjos ao lado do positivismo de Bilac; os conflitos interiores e exteriores do poeta do hediondo com o mundo físico e capitalista  e os conflitos sociais do país que vive em meio a uma crise mundial. Seguindo modelos europeus e investindo largamente na urbanização e na indústria o país busca modernizar-se. O automóvel é o símbolo da modernidade mais explorado pelo romance, sua presença modifica a paisagem da cidade e o ritmo da vida urbana.
Baseada na economia agrária exportadora, principalmente pela cafeicultura, a sociedade entra em desequilíbrio social, dividindo-se entre os ricos proprietários rurais (barões do café), a burguesia industrial nascente e a classe trabalhadora, operários e ex-escravos, oprimindo a classe média. Os contrastes sociais desencadeiam o que Augusto dos Anjos e o narrador do romance chamam de “alvoroço”, pois se intensificam os gritos e ações de revolta. Entre eles a revolta da chibata. No plano jornalístico, tornam-se mais freqüentes a prática de entrevistas, reportagens e crítica literária, surgindo a cultura que retrata o “sorriso da sociedade” [69].
É dentro deste clima de ebulição e inquietação política, social e cultural que um novo ideal nacionalista se forma. Contra os modismos da arte literária, Augusto dos Anjos propõe-se como o brasileiro de raízes provincianas, mas com expressão do sentimento do mundo. O paralelo com Bilac não é gratuito, pois é o poeta progressista e patriota, desejoso de um Brasil civilizado, aos moldes da tradição francesa e aliado da ideologia da Belle époque carioca. Será desta variação de posicionamentos críticos em relação ao país que os ideais modernistas ganharão forma e conteúdo, tendo como um dos centros de discussão a questão da identidade nacional.
Após a abolição da escravidão e com as mudanças sociais e culturais o Brasil precisa repensar seu discurso de nação. O romance, neste sentido, refigura um momento da história do Brasil marcado pela ausência de um discurso de nação que respondesse à necessidade de integração nacional daquele momento em que o país apresenta atônito diante das mudanças e dos conflitos no plano mundial.
O ano de 1914 é marcado pela primeira Grande Guerra, encerrando um período de conflitos sociais intenso, bem como pela morte do poeta Augusto dos Anjos. Um evento mundial em paralelo a um evento nacional particular, ambos sinalizando a necessidade de se repensar a condição nacional do Brasil em suas relações interiores e exteriores. A condição nacional refigurada no romance é de balbúrdia e incertezas, assim como a condição social de Augusto. Estes paralelismos contextuais feitos, não raro, pelas apropriações de fragmentos das cartas dão o tom reflexivo do romance. Uma destas relações nos parece bastante clara no subcapítulo 14 do capítulo intitulado “Morcego tísico”. O narrador cita vários episódios históricos de grande ou pequena repercussão, mas que contribuem para a construção do clima de conflitos sociais da época para então concluir: “A anormalidade parecia ser a norma geral. E o emprego de Augusto não saía das promessas fúteis” [70]. A busca do poeta pela estabilidade, pela fixidez parece encerrar-se, entretanto, com a nomeação para Diretor do Grupo Escolar de Leopoldina.
No soneto “Guerra”, composto depois da irrupção em agosto de 1914, da conflagração européia que repercutiu em Leopoldina, Augusto encara o conflito, segundo Assis Barbosa, como uma expressão da Struggle for live darwiniana em escala internacional. O conteúdo do poema contrasta com a posição de seu irmão Rômulo, apresentada pela via ficcional, no romance. Uma voz mais pragmática que a de Augusto, Rômulo traz novamente a questão do pacifismo do povo brasileiro e parece sutilmente lembrar a voz solitária do poeta em outra fase mais patriótica, quando em cena aberta gritara “Viva a república”, no dia 13 de maio de 1908. [71]

O Brasil permanece numa insuportável paz, como se não fizesse parte do mundo. Algumas vezes caminhamos pela rua e ouvimos alguém gritar ‘Vive la France!’, mas é uma voz solitária; [...] [72]
E para concluir a idéia de pacifismo, Rômulo afirma que “o povo brasileiro só vai empunhar suas escopetas no dia em que o privarem de seus magníficos cigarros Vanille”. Interlocutor de Rômulo, o narrador é quem mais uma vez expressa o ponto de vista de Augusto dos Anjos. Ainda que de modo menos filosófico, o darwinismo se mostra semelhante.

A guerra toma as páginas de nossos jornais e a cabeça dos jovens arrebatados, que sonham com as batalhas, imaginam-se pilotando aeroplanos, sobrevoando cidades, despejando bombas nas catedrais dos inimigos. Metem suas imaginárias botas na lama para atravessarem campos minados, saltam sobre cercas de arame farpado, cavam trincheiras, atiram com canhões, enfiam baionetas nos peitos dos inimigos que muitas vezes têm o rosto de seus próprios pais ou irmãos. A Guerra, para nós, é apenas uma fantasia. [73]

No poema, Augusto define “Guerra é esforço, é inquietude, é ânsia, é transporte.../ É a dramatização sangrenta e dura/ Da avidez com que o espírito procura/ Ser perfeito, ser máximo, ser forte!” [74] A transição entre o poema e a narrativa do romance parece nos sugerir que a guerra é uma fantasia para a humanidade, mas esta é uma proposta que não se encerra no romance, se complementa com as idéias inferidas no texto poético de Augusto dos Anjos. Entre um ponto de vista filosófico e outro mais mundano o leitor trabalha com o seu horizonte de conhecimento, formula conclusões possíveis sobre o assunto aberto.
A atualização de discursos de nação ou sobre a condição nacional brasileira de cada época se dá justamente neste processo de intersecção discursiva. A narrativa provoca no leitor a relativização de discursos do passado e consequentemente dos discursos do presente inscritos nas narrativas que reconstroem ou refiguram este passado.

 3.1.3 Dias e Dias: sabiás na gaiola

As análises empreendidas até aqui apontam para a idéia de que entender o Estado como anterior à nação, no caso brasileiro, não dá conta da complexidade do processo de construção da identidade nacional. [75] O romance Dias e dias (2003), de Ana Miranda, nos leva a reflexões sobre a formação da nação e do Estado nacional brasileiros, no início do século XIX. Parece-nos que a narrativa aponta para o fato de que esta formação não se dá apenas por uma “ruptura unilateral do pacto político que integrava as partes da América no Império Português” [76]; e que a vontade de emancipação política não equivale à constituição do Estado nacional brasileiro.
As relações do entre o romance Dias e dias, de Ana Miranda, e discurso nacionalista romântico estão sugeridos em vários momentos da narrativa do romance. Por exemplo, o relato sobre João Manuel Gonçalves Dias, pai do poeta, como um “português de Trás-os-Montes, não gente daqui mesmo, não era brasileiro como minha família de militares cearenses que vieram lutar contra o coronel Fidié e acabaram ficando por aqui [...][77]. A narradora, Feliciana, assinala neste trecho a inimizade entre brasileiros e portugueses, entre os que defendiam o Brasil independente e os que queriam a volta do domínio português. O pai de Gonçalves Dias lutara ao lado da resistência, comandada pelo Major João da Cunha Fidié, citado no poema “Ao aniversário da independência de Caxias” em que o poeta canta a força e a liberdade de Caxias. Fica assim, exposta a posição política oposta entre o pai de Feliciana e o pai de Gonçalves Dias, constituindo isso parte da contextualização histórica do romance.
Em seguida, a narradora contextualiza historicamente o ano do nascimento do poeta romântico e o seu como um tempo conturbado. Tal como Gonçalves Dias, em nota autobiográfica, a narradora associa o nascimento de ambos aos acontecimentos políticos, assumindo de forma indireta que foram profundamente marcados por eles. Nascido com a independência de sua terra, como o apresenta Lúcia Miguel Pereira, Gonçalves Dias narra seu nascimento assim:

‘As províncias do norte do Brasil foram as que mais tarde aderiram à independência do Império. Caxias, então chamada Aldeias Altas no Maranhão, foi a derradeira. A independência foi ali proclamada depois de uma luta sustentada em denodo por um bravo oficial português que ali se fizera forte. Isto teve lugar à [sic] 1º de Agosto de 1823. Nasci a 10 de agosto desse ano.’ [78] 

Enquanto que Feliciana opta por uma descrição mais social:

O tempo de nosso nascimento, Antonio em 1823 e eu em 1824, foi conturbado, Caxias já era uma comarca próspera, os portugueses desde muito antigamente tinham se estabelecido lá para negócios de comércio, retalho, exportação, importação, eles animavam a economia, tinham os cargos políticos, controlavam os negócios públicos, [...]. Um pouco antes do meu nascimento começou um tempo de pobreza, o negócio do algodão estava esboroado porque o algodão não tinha mais lugar no comércio entre os países [...] aqui se ouvia falar todo o tempo de insurgentes, movimentos nacionalistas em que conspiravam contra o rei, mas os portugueses em Caxias adoravam dom João e resistiam ao Império Independente. [79]

Observamos, portanto, que há uma mudança de focalização histórica que vai do factual para o social, mas há ainda a intenção de marcar o contexto histórico como um dos fatores determinantes na formação ideológica nacionalista do poeta. A vitória dos brasileiros será cantada pelo poeta em sua homenagem ao aniversário da independência de Caxias, a qual se encerra com os versos “Oh! Fora belo arriscar a existência em pró da pátria, / Regar de rubro sangue o pátrio solo, / E sangue e vida abandonar por ela.” [80] A narradora e personagem, que não esconde a sua obsessão pelo poeta, cola a sua origem na dele e seu posicionamento político, ou a falta dele, é uma união de simpatias inconciliáveis.

Às vezes fico pensando: se não tivesse acontecido a Independência, se papai não tivesse vindo lutar contra o Fidié, se eu tivesse nascido em Fortaleza, eu nunca teria conhecido Antonio. Por isso amo secretamente o coronel Fidié e quando papai fala mal dele eu saio de perto.[81]

A fala de Feliciana, compreensiva dos conflitos interiores do poeta mestiço e filho natural (português), se revela também nos primeiros versos do mesmo poema Caxias (ao aniversário da independência de Caxias): “O nobre Fidié, que a antiga espada, / Do valor Português empunha hardido...”. Por outro lado, podemos inferir desta fala que destino de ambos se amarra ao destino e à história da nação brasileira. Os textos do poeta, assim como o contexto histórico e social do país apresentados por biografias ou pela historiografia literária brasileira atravessam o romance, imprimindo nele um aspecto de fragmento de um mosaico representativo da história de um espaço, um tempo e um ser que inscrevem o processo formação nacional. 
Embora o romance privilegie o traço lírico do poeta, os sinais nacionalistas surgem ora como relatos dos conflitos sociais, ora como apropriações de elementos poéticos presentes na obra de Gonçalves Dias. Alguns capítulos são essencialmente voltados para a temática nacionalista, como “A Balaida” e “A volúpia da saudade”; outros tratam o assunto de modo muito sutil, como em “Um sabiá na gaiola”; Há também sub-capítulos que se referem diretamente a uma obra ou a um poema específico como “Canto dos piagas” – no qual se trata do apego aos índios – “Canção do exílio” – onde o poema é interpretado pela narradora, leitora contemporânea do autor – e “Canto do piaga” – aparente repetição de títulos, onde são apresentados os poema do Primeiros cantos (1841). Navegando entre a obra poética e a história pessoal de Gonçalves Dias, bem como pela história da formação nacional do Brasil, Feliciana traduz-se em uma memória que vem narrar e fazer reviver um período histórico.
O tom saudosista atravessa toda a narrativa. Ausente o poeta da “Canção do exílio”, Feliciana, por vezes, se assemelha à pátria exilada.

Antonio era o ausente, ele partia e eu ficava, ele sempre viveu uma eterna partida, em estado de viagem, um pássaro migrador, e eu sempre parada no mesmo lugar feito uma palmeira, e ele, o sabiá que apenas pousa um instante. [82]

Esta inversão do sentido da “Canção do exílio” encerra o capítulo “A Balaiada” que refigura a batalha nacionalista desencadeado por diferenças sociais e políticas e, por que não dizer, pelos diferentes projetos de nação existentes naquele momento de desestabilização, provocada pela Proclamação da Independência. O episódio traz conseqüências drásticas para a vida particular do poeta que se encontra na Europa, mas depende de recursos financeiros que deveriam ser (mas não são) enviados pela madrasta. Há aí o entrecruzamento entre o público e o privado, a história nacional e a história particular, biográfica do poeta. Há, no romance, uma sobreposição discursiva em que Gonçalves Dias reconstrói em sua obra literária um passado histórico da formação nacional respondendo a um discurso de nação romântico do século XIX, enquanto que Ana Miranda reconstrói o passado do Estado e da nação brasileira, apropriando-se do discurso de nação incorporado por Gonçalves Dias e do contexto histórico em que este discurso se impunha e se formava.
A paródia textual de poemas e cartas de Gonçalves Dias se dá neste mesmo sentido de sobreposição ou de justaposição. Ao tratar dos Primeiros cantos, Feliciana apresenta-se, pela segunda vez, como inspiradora do poeta romântico. Desta vez trata-se do poema “Canção do exílio” sobre o qual a leitora Feliciana apresenta uma interpretação aparentemente ingênua de moça apaixonada, revelando n o entanto, um paralelo entre esta moça e a pátria de Gonçalves Dias.

O livro começava pela “Canção do exílio”, que me deixou na maior das felicidades, pois mostrava o quanto Antonio tinha recordações de Caxias, uma saudade cheia de lirismo. Achei, aqui dentro de mim, de meu coração, que Antonio tinha escrito a “Canção do exílio” para mim, porque eu sabia remedar igualzinho o gorjeio do sabiá, então quando ele dizia ‘as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá’, para mim queria dizer que as mulheres do mundo não eram tão primores a desfrutar como as mulheres daqui [...][83]
 
O cruzamento entre o horizonte de conhecimento e o de expectativa da leitora do século XIX, aliado ao prólogo escrito pelo autor no livro, justificavam, de certo modo, a interpretação de Feliciana. Por outro lado, se lermos o romance entendendo a narradora como imagem especular da cidade de Caxias, a interpretação dada ao poema justifica-se mais plenamente. O prólogo da primeira edição dos Primeiros cantos apropriado para esta interpretação do poema diz o seguinte:

Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política para lêr em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idéias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto emfim da natureza.[84]

Feliciana inclui parte deste trecho do prólogo em que o poeta apresenta aspectos do modo de produção poética, aliás, típicos do Romantismo, e o usa para fundamentar sua interpretação, traduzindo ou simplificando versos do poema em questão.

Tudo aquilo escrito quadrava muito bem com o que exprimia, ele no prólogo falava que afastava os olhos da arena política para ler em sua alma, e em sua alma encontrou palmeiras e sabiás, as palmeiras estão aqui, basta abrir os olhos e olhar para qualquer lado, eis as palmeiras! E nelas... os sabiás! Um céu cheio de estrelas, mais prazer ele encontra cá. [85]

A voz do poeta é apropriada e adquire novo sentido. A produção de improviso e de efusão sentimental é relacionada apenas à representação da paisagem, da cor local, na interpretação do poema dada por Feliciana. Esta era a exigência maior dos grandes da literatura portuguesa como Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Assim, de certo modo, podemos ver no encanto de Feliciana com o poema, o mesmo encanto que provocou em Herculano e que o fez enviar seu reconhecimento literário ao poeta brasileiro.
Gonçalves Dias é, assim, um sabiá que aprendeu a cantar na gaiola, tal como nos descreve a narradora o processo de aprisionamento do sabiá, ave que não se ajusta à prisão em gaiolas. Cercado pela crítica, bem como pelas imposições estéticas de lideranças portuguesas no meio literário, porém impulsionado pelo desejo de ser o primeiro poeta brasileiro a ganhar destaque, o poeta alcança o reconhecimento. A literatura nacional brasileira tem em Gonçalves Dias a expressão de uma identidade nacional fundada na busca pela representação do herói nacional e da cor local, que responde ao projeto nacionalista romântico.
Segundo o professor e historiador István Jancsó, os estudos históricos têm “privilegiado a formação do Estado, reconhecido brasileiro e a partir daí (em geral por inferência), admitido como nacional.” [86] Entendemos, portanto, que o romance segue direção contrária. Ainda segundo o professor, a emergência do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência, no interior do que fora anteriormente a América portuguesa, de múltiplos projetos políticos, cada qual sintetizando trajetórias coletivas que, na sua particularidade, balizavam alternativas diferentes de futuro. Estes projetos tomavam por fundamento o passado e o presente das comunidades em que tais projetos seriam engendrados. Sendo assim, cada qual se referia a alguma realidade que, no contexto da crise geral do antigo regime, trazia em si potencialidade de tipo nacional. Diante disso, se observarmos nas manifestações contemporâneas expressões de sentimento de pertencimento ou indicando adesão a alguma comunidade imaginável como nacional, isto significa que precisamos repensar o universo das identidades coletivas, fundamentalmente devemos observar o que elas “revelam sobre a própria estruturação do novo estado e sobre o tomar corpo e forma da nova nação brasileira na primeira metade do século XIX”. [87] A focalização da narrativa do romance Dias e dias em um contexto histórico social, no qual se inclui o poeta, nos permite visualizar o confronto entre dois aspectos da formação nacional: aqueles que queriam manter a nacionalidade portuguesa e os que queriam libertar-se dela. Refiguram essas posições o pai de Gonçalves Dias e o pai de Feliciana; como posições militares aparecem o coronel Fidié – que Lúcia Miguel Pereira diz ser Major – e Lord Cochrane.
Nos romances Boca do inferno, A última quimera e Dias e dias há, através da revisitação da memória e do momento literário de cada poeta, uma busca pela representação  que proporcione ou sugira a discussão a respeito da condição nacional (política, cultural e literária), confrontando o passado com o presente e vice-versa. No romance Boca do inferno, Gregório de Matos, no século XVII, revolta-se com as atitudes subservientes do Brasil em relação a Portugal, vivendo uma relação de amor e ódio com as duas pátrias, mas sendo ainda um sabiá em liberdade. A narrativa de  Dias e dias encontra Gonçalves Dias, no século XIX, num contexto de luta pela afirmação da identidade brasileira diante da pátria-mãe, para isso é preciso superar a perda e suportar as limitações da gaiola nacionalista. De outro modo, em A última quimera, as reflexões sobre o canônico revelam uma crítica ao sistema histórico-literário brasileiro, em franco reconhecimento da autonomia da literatura e da comunidade nacional brasileira que discute internamente seu processo de formação.
Retomando a discussão apresentado no início deste artigo, encerramos nossa proposta de análise lembrando que se Jameson exige a conexão lukásciana entre grandes acontecimentos sociais e o destino existencial dos indivíduos para a permanência do romance histórico, P. Anderson aposta na ideia de que este revival pós-moderno deveria ser visto antes como uma tentativa desesperada de nos acordar para a história, em um tempo em que morreu qualquer senso real dela. A visão fagmentária que Ana Miranda imprime em seus romances históricos sobre a matéria da história, assim como a de muitos outros autores hoje, parece-nos oposta à visão do anjo da história anunciado por Benjamim, o qual se distancia de algo em que fixa a vista. O anjo de Benjamim é retomado por Perry Anderson para encerrar sua resposta a Jameson e agora encerra também estas reflexões:

Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.[88]

As apropriações paródicas nos romances de Ana Miranda revelam o recorte intencional de elementos históricos, privilegiando, especificamente em Dias e Dias, o poder imaginativo do falso, da mentira e do engodo como a reconhecer a multiplicidade de versões fantásticas e autocontraditórias da história, propondo entre elas a versão da ficção histórica.

REFERÊNCIAS

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[1]Refiro-me a discussão proposta pelo texto de Frederic Jameson, “O romance histórico ainda é possível?”, e à resposta de Perry Anderson a Jameson em “Trajetos de uma forma literária”, ambos traduzidos e publicados na revista Novos Estudos, em março de 2007. A questão foi apresentada e discutida no capítulo "A paródia e a nação em discursos", integrante do meu trabalho de tese Refigurações de nação no romance histórico e a paródia moderna de Ana Miranda, UFPR, 2009.
[2] Idem, p.216.
[3] HUTCHEON, Linda. Poética do pós modernismo: História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago Ed.: 1991. p.63.
[4] JAMESON, p.201.
[5] Idem, p.202.
[6]Assumimos a posição dada por P. Anderson ao afirmar que para apreender o sentido no qual Guerra e Paz (ou outro romance) é um romance histórico que interliga acontecimentos públicos e vidas privadas à maneira clássica é preciso inseri-lo na série da qual é parte "O romance histórico [...] é produto do nacionalismo. Isso vale tanto para Tolstói quanto para Scott, Cooper, Manzoni, Galdós, Jokái, Sienkiewcz e muitos outros". Acrescento que isso vale também para Ana Miranda e outros escritores que, intencionalmente ou não, trabalham ficcionalmente sobre o discurso ou o documento históriográfico.
[7] HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70. 1998.
[8] HUTCHEON, Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1998. p. 17
[9] HUTCHEON, p. 19
[10] Idem, p.29
[11] LYOTARD, Jean Françoise. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
[12] HUTCHEON, p.128.
[13] LIMA, Rogério.  O dado e o Óbvio: o sentido do romance na pós-modernidade. Brasília: EDU/Universa, 1998.
[14]Idem, p. 129.
[15]HUTCHEON, p. 84.
[16] CALMON, Pedro. A vida espantosa de Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Bloch, 1983. p.65. (Itálicos do autor)
[17]MIRANDA (1989), p.26.
[18] Idem, p.26-27.
[19]Idem, p. 27
[20] HUTCHEON, Poética do pós-modernismo:  história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 88.
[21] CALMON, Pedro. A vida espantosa de Gregório de Matos. Rio de Janeiro: Bloch, 1983. (p. 212 – 217).
[22]Idem, ibidem.
[23] O melhor exemplo desta crítica é o poema “Triste Bahia”, que fala das transformações ocorridas na cidade devido à chegada da “máquina mercante” que a fez dar “tanto açúcar excelente pelas drogas inúteis”. Deste modo, o poeta coloca os mercadores como o primeiro móvel da ruína da cidade.
[24] SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo (políticas de Globalização e de Identidade na moderna Cultura brasileira). Unas Lecture, Berkeley, out/nov. 1995. Disponível em: http://www.ufrj.br/pacc-equipesilviano.html. A expressão é de Joaquim Nabuco e sintetiza a idéia de que “O espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico”.

[25] MIRANDA, p. 13
[26] MATOS, Gregório de. In: SILVA, José Pereira da. Obra poética de Gregório de Matos:transcrição e manuscritos. Disponível no site www.filologia.org.br/pereira/textos em 05/11/2009. (Negritos nossos)
[27] Idem, p. 13.
[28] CALMON, p. 28
[29] Idem, p. 27
[30] CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 24
[31] Idem, p.27
[32] CAMPOS, Haroldo de. O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira: O caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989. p. 34 -35.
[33] COUTINHO, Afrânio. Formação da Literatura Brasileira. In: ______. Conceito de Literatura Brasileira. Petrópolis: Ed. Vozes, 1981. p. 39.
[34] Idem, p.40.
[35] MIRANDA 1989, p. 204
[36] Idem, p. 206
[37] Idem, p. 232
[38] Idem, p. 326
[39] MIRANDA, p.215
[40] Idem, p.292
[41] Idem, p. 293.
[42] MATOS, Gregório de. Obra Poética. Editora Record, Rio de Janeiro, 1992. Disponível no site:
                 http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/27.html#-1, em 05/11/2009. (Negrito nosso)
[43] Esta construção de Ana Miranda é uma visão do “ser brasileiro” que muito se parece com a descrita por J. Nabuco e analisada por S. Santiago em “Atração do Mundo” (1995) op. cit. Para Nabuco “os americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante do seu espírito e à Europa por suas camadas estratificadas”. Esta dupla formação do espírito brasileiro, segundo Nabuco, possui um equilíbrio aparente, pois “não se pode dar o mesmo peso e valor à busca sentimental do começo e à investigação racional da origem”. Parece, no entanto que no romance há uma grande valorização da busca sentimental do começo e a investigação racional serve como fundamentação desta busca.
[44]MIRANDA, p.12
[45] Idem, p. 104
[46] MIRANDA, p.12. Apropriação da segunda estrofe do soneto “Triste Bahia”, no qual segundo Antonio Dimas “pondo os olhos primeiramente na sua cidade, conhece que os Mercadores são o primeiro móvel da ruína, em que arde pelas mercadorias inúteis e enganosas”.  DIMAS, A. Gregório de Matos: literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981.
[47] MAGALHÃES JR. Raimundo. Poesia e vida de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 248.
[48] MIRANDA (1995), p. 33.
[49] MIRANDA (1995), p. 33
[50] BARBOSA, op. cit., p.63.
[51] MIRANDA (1995), p.34
[52] Idem, p. 112
[53] Idem, p. 116.
[54] Idem, p. 116.
[55]Idem, p. 174
[56] Idem, p. 180
[57] Idem, p. 233
[58] Idem, p. 234 - 235
[59]MIRANDA (1995), p. 129
[60] MAGALHÃES JR, p.201
[61]MAGALHÃES JR., p. 241.
[62]MIRANDA (1995), p. 129
[63] LOVE, Joseph. “Marinheiros negros em águas nacionais”. Revista de História da Biblioteca Nacional. n. 9, Abril/2006. Disponível no site: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=961 em 09/11/2009.
[64] MIRANDA (1995), p. 128
[65] Idem, p. 74.
[66] Idem, p. 75
[67]MAGALHÃES JR., p. 241.
[68] MIRANDA (1995), p. 129.
[69] MANO, Carla da Silveira. A tradição da negatividade na modernidade lírica brasileira. 273 p. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Programa de pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006.
[70]MIRANDA (1995), p, 132.
[71]MAGALHÃES JR, p.283
[72]MIRANDA (1995), p. 213
[73] MIRANDA (1995), p. 212.
[74]MAGALHÃES JR, p.309.
[75] JANCSÓ, István. “Formação do Estado e da nação: Brasil 1780 – 1850”. Disponível no site: http://www.fflch.usp.br/dh/pos/hs/images/stories/docentes/IstvanJancso/FundacaoEstadoNacao.pdf em 09/11/2009.
[76] Idem, p.03
[77]MIRANDA (2003), p. 31
[78]PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1941. p. 09. A autora, aponta, em nota, o “evidente engano do poeta”, pois desde 1812, quando foi elevada a vila, tinha Caxias o nome atual.
[79]MIRANDA (2003), p. 34-35.
[80]PEREIRA, p.12.
[81]MIRANDA, p. 42
[82] MIRANDA, P.113.
[83]MIRANDA, p. 140.
[84]Apud SILVA, José Norberto de Souza. Poesias de Gonçalves Dias. Tomo I. Rio de Janeiro: Garnier, 1963. p.6
[85] MIRANDA, p. 140.
[86] JANCSÓ, István. “Formação do Estado e da nação: Brasil 1780 – 1850”. Disponível no site: http://www.fflch.usp.br/dh/pos/hs/images/stories/docentes/IstvanJancso/FundacaoEstadoNacao.pdf , em 09/11/2009, p. 02
[87]Idem, p. 02
[88]BENJAMIN apud Anderson, p. 220